Ceará

Entrevista

Período de chuvas no Ceará reforça importância da construção de cisternas na região semiárida

Nacélio Chaves conversou com o Brasil de Fato sobre o impacto das cisternas para as famílias que vivem no campo

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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"Essas tecnologias sociais, as cisternas, asseguram esse direito, resolvem o problema dessas famílias com relação à falta de água", afirma Nacélio Chaves. - Foto: Arquivo Esplar

A construção de cisternas para a captação e armazenamento de água é uma forte iniciativa para promover o acesso à água de qualidade tanto para consumo humano como para a produção de alimentos no Semiárido brasileiro. E para falar sobre o impacto da construção dessas cisternas para as famílias do campo e sobre a importância de uma política pública que garanta essas construções o Brasil de Fato conversou com Nacélio Chaves, Engenheiro Agrônomo, Coordenador de projetos do Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria, que atualmente coordena o Programa de Cisternas em contrato com a Secretária de Desenvolvimento Agrário e integra o Fórum Cearense Pela Vida no Semiárido. Confira.

As cisternas são consideradas tecnologias sociais. O que são as tecnologias sociais?

As tecnologias sociais são tecnologias que asseguram direitos à população. São tecnologias que resolvem problemas sociais, por isso traz esse nome. São tecnologias que trazem qualidade de vida para as famílias, e aí, especificamente observando as cisternas, essas tecnologias levam água para as famílias. 

A água é um direito efetivado que cada família deve ter, tanto água para consumo como para a produção. Então, essas tecnologias sociais, as cisternas, asseguram esse direito, resolvem o problema dessas famílias com relação à falta de água.

E quais são os projetos existentes atualmente no estado do Ceará que trabalham com a construção dessas cisternas?

Hoje, no estado do Ceará, nós temos projetos de cisternas em execução e esses projetos vêm de duas frentes. O financiamento desses projetos hoje, no estado do Ceará, é feito pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), e ele tem contrato com a Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA). E tem também uma outra frente que tem contrato com a AP1MC, que é a Associação Programa Um Milhão de Cisternas. Então, hoje, no estado do Ceará, a gente tem execução desses projetos na construção de cisternas de primeira água, que é uma tecnologia que capta água da chuva para o consumo humano, para cozinhar e temos também a construção de cisterna calçadão, que é uma tecnologia que traz água para a produção, e tem também a construção de cisterna escolar, que é uma tecnologia que traz abastecimento de água para as escolas, para garantir esse direito da água nas escolas.

Quais são os tipos de cisternas que são construídas nesses projetos?

A cisterna de primeira água, que foi a primeira que eu me referi, é uma cisterna que tem um volume de 16 mil litros e ela é feita com placa de concreto. Ela capta água do telhado das residências e essa água é destinada para o consumo humano das famílias e para a feitura dos alimentos, o cozinhar dos alimentos. A cisterna calçadão, ela também é uma cisterna de placa de concreto, ela tem um volume de 52 mil litros de água, com uma calçada. No caso da cisterna calçadão, a área de captação da água é essa calçada e 200 m² e essa água é voltada para a produção de alimentos agroecológicos. E temos também a cisterna escolar, que também tem um volume de 52 mil litros, é também uma cisterna de placas de concreto só que, diferente da calçadão, ela capta água do telhado da escola que, geralmente, é uma área de captação maior do que residências, então consegue garantir o abastecimento dessas cisternas e essa água é voltada para a escola, para o preparo da alimentação escolar, para o abastecimento do bebedouro e o consumo das crianças, professores e funcionários.


A cisterna escolar tem um volume de 52 mil litros. Ela capta água do telhado da escola e essa água é voltada para a própria escola, para o preparo da alimentação, abastecimento do bebedouro e consumo. / Foto: Arquivo Esplar

Como é o processo para as famílias ou até mesmo para as escolas receberem essas cisternas?

Existe um critério para essas famílias e escolas serem cadastradas. Existem vários critérios, critérios prioritários, mas trazendo de uma forma geral, no caso das famílias, são famílias rurais, de baixa renda, considerando aqueles que têm a renda per capita de até meio salário mínimo. E trazendo alguns critérios de priorização, são famílias com perfil de Bolsa Família, com renda per capita mensal de até R$218, famílias chefiadas por mulheres, famílias com maior número de crianças de 0 a 6 anos, famílias com crianças e adolescentes em idade escolar e famílias com pessoas com deficiência. Então, esses são, mais ou menos, os critérios que a gente observa. Quando as equipes das diversas instituições estão em campo para fazer o cadastramento dessas famílias é necessário observar esses critérios, porque é uma tecnologia importante e, infelizmente, é uma tecnologia que hoje não chega para todo mundo que necessita, então a gente tem que ter muita responsabilidade em observar esses critérios para fazer a seleção dessas famílias. 

Com relação às escolas, escolas de comunidades rurais que podem receber essas cisternas, tanto escolas municipais como estaduais.

E é necessário ter, para além desses critérios de renda, de número de pessoas, é necessário ter espaço que possa alocar essa tecnologia, tanto a escola, no espaço da escola, como nas residências das famílias. Tem que ter uma distância mínima de fossas, de 10 a 15 metros no mínimo, não pode estar próximo de currais também, então tem uma série de critérios que as equipes identificam quando vão fazer as visitas. As equipes passam por essa capacitação, as famílias também passam por um processo de capacitação, não é só a construção da cisterna. 

As famílias, as escolas, podem se inscrever para esses projetos de cisternas a qualquer momento do ano ou tem algum edital específico, algum período específico para fazer essa inscrição?

Geralmente, esses projetos vêm através de editais do Governo Federal, editais da AP1MC, do Governo do Estado, da Secretaria do Desenvolvimento Agrário, então, é necessário que tenha um edital em aberto, e aí o edital vai dizer quais são os lotes que contemplam os estados, os municípios, mas para as famílias, para as escolas estarem atentos a isso é importante procurar a comissão municipal, todo o município possui a comissão municipal que é composta por diversos órgãos, entidades, sindicatos, igreja, Secretaria de Agricultura do Município, Secretaria de Educação, então, o importante é procurar essas comissões municipais e sindicatos rurais.

Quando nós vamos executar essas políticas, a gente procura as comissões municipais daqueles municípios que estão contemplados no edital para poder mapear essas famílias e as escolas que estão nessa situação de necessidade de água. Então, é importante sempre estar atento, atualizando as demandas a partir das comissões municipais.

Quais os cuidados que as famílias e as escolas precisam ter com essas cisternas?

Esse ponto é um ponto importantíssimo, que a gente trata durante a execução dos programas de cisternas, porque após a entrega da tecnologia ela fica ali de posse e responsabilidade da família, e é muito necessário a família ter alguns cuidados para garantir a longevidade dessa tecnologia. Ela é uma tecnologia de longa duração, desde que tenha esses cuidados, por isso que as famílias e as escolas passam por processos formativos. 

Primeiro, ter o entendimento do uso racional dessa água que está sendo captada para um destino. A cisterna de 16 mil litros é utilizada para captar água de consumo humano e água para cozinhar. Então, usar essa cisterna especificamente para isso, para garantir que ela possa permanecer abastecida e abastecer a família durante, principalmente, todo o período de estiagem. A limpeza dessas cisternas também é muito importante. Entre as quadras chuvosas geralmente a cisterna baixa o nível de água, então, quando está próximo de iniciar uma próxima quadra invernosa é importante fazer uma limpeza, uma lavagem dessas cisternas para estar recebendo uma nova água e fazer a limpeza dos elementos da cisterna como a calha, as tubulações, os canos e o filtro coador.

Isso é importantíssimo, e esse passo a passo, todo esse cuidado, a gente reforça com a família em todos os processos, desde a fase de cadastro até a entrega da cisterna, principalmente, na capacitação das famílias, que é um curso que se chama GRH - Gestão de Recursos Hídricos.

E como é que as cisternas impactam a vida das famílias que vivem no Semiárido brasileiro?

Olha, ela é fundamental. A cisterna é uma tecnologia que efetiva direitos, é uma tecnologia que traz o direito do acesso a água para o consumo, para a produção. Então, o impacto na vida dessas famílias é muito grande. Você imagina estar ali na sua residência, lá na sua comunidade e você não ter água para beber quando você tem sede, você não ter água para fazer o preparo de uma alimentação para sua família, você não ter água para abastecer uma fruteira que tem no seu quintal, um canteiro de verduras, então assim, a água também é alimento, a água é vida e essa cisterna leva essa vida, leva esse alimento para as famílias, então ela muda totalmente o cenário da família. A gente não consegue viver bem se não tiver água. Essas cisternas levam qualidade de vida para as famílias.


A cisterna calçadão tem um volume de 52 mil litros de água, com uma calçada. Sua área de captação da água é essa calçada e 200 m² e essa água é voltada para a produção de alimentos agroecológicos. / Foto: Acervo ASA

De acordo com informações divulgadas pelo Governo Federal, o Programa de Cisternas foi estabelecido como política pública em 2003 e é regulamentado pela Lei nº 12.873 de 2013, pelo Decreto nº 9.606 de 2018, e por várias portarias e instruções normativas. Qual a importância dessa iniciativa ter se tornado uma política pública?

Muito importante para nós que defendemos o direito do acesso a água, defendemos a agroecologia. A cisterna descentraliza o abastecimento de água, ela democratiza o acesso a água, ela leva o direito às famílias, então essa condição que ela proporciona ser uma política pública é muito importante, porque nós conseguimos fazer força, fazer pressão para que essa política pública chegue para as famílias. A gente consegue fazer incidência política a partir da ativação da política pública, então é importantíssimo e hoje é política pública através de um movimento de base, movimento de base agroecológica, movimento sindical, movimento de organizações que lá atrás, fizeram pressão, foram para as ruas, se mobilizaram para que isso hoje possa ser uma política pública, para que programas de cisternas hoje sejam políticas públicas. 

Eu acho que a gente tem que tratar isso com muito respeito, com muita admiração, e hoje a gente está podendo fazer esses programas no estado do Ceará. 

A gente tem editais que estão em execução no estado do Ceará e eu aproveito até a oportunidade para a gente refletir um pouco de quais são os planos de governo que favorecem essa política pública. Nós tivemos um processo de retrocesso após o golpe na nossa presidenta Dilma e a partir daí esses programas deixaram de ser executados, eles não foram mais executados, eles não foram mais colocados em pauta, então a gente passou quase sete anos sem ter nenhum programa de cisternas, sem ter a garantia desses direitos chegando para essas famílias. Ele retomou agora no final de 2023 quando faziam exatamente vinte anos do programa de cisternas, então foi muito simbólico para a gente essa retomada nessa data comemorativa de vinte anos do programa de cisternas, que foi criado em 2003. 

Em 2023, teve essa retomada após esse desgoverno. Então é um apelo que nós fazemos também para as populações camponesas, principalmente, que observem muito bem quais são os planos de governo que apoiam essas políticas, não só essas políticas, mas também outras políticas fundamentadas nos princípios da agroecologia, que efetiva direitos, que levam qualidade de vida para as famílias.

O que é o Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria e quais os trabalhos realizados pela instituição?

O Esplar – Centro de Pesquisas e Assessoria é uma Organização Não Governamental, sem fins lucrativos. Fomos fundado em 1974 e atuamos em defesa da agricultura familiar e da agroecologia no Semiárido cearense. O Esplar existe para apoiar os movimentos sociais na construção de um projeto de desenvolvimento solidário, ecologicamente sustentável e resiliente às mudanças climáticas. Temos foco na agricultura familiar de base agroecológica e na perspectiva de igualdade de gênero, raça e etnia.

Nós priorizamos alguns direitos para essas famílias, para esse público que a gente trabalha, que é o direito à soberania e segurança alimentar e nutricional, direito à água de qualidade, trabalhamos também fortemente o direito das crianças e dos adolescentes e também o direito da mulher. O direito da mulher é uma pauta prioritária aqui para nós do Esplar. Nós somos uma instituição feminista e nós trabalhamos com gênero, na perspectiva feminista, então, todas as nossas ações, sem exceção, trabalhamos as questões de gênero. A gente dialoga sobre a divisão justa do trabalho doméstico, sobre a violência doméstica, violência sexual, então a gente traz essas questões em todos os trabalhos da gente. 

No programa de cisternas não é diferente. Nas capacitações que nós fazemos com as famílias, para além da pauta da água, a gente também aborda essas questões sociais e, obviamente, abordamos a questão de gênero, a divisão do trabalho doméstico, entre outras questões que dizem respeito desse tema.

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Edição: Lívio Pereira