A cultura segue sendo uma das principais ferramentas na transmissão do humano.
Olá, espero encontrar vocês bem. Estou retornando essa coluna aqui no BdFCE depois de um longo período sem escrevê-la por motivos de esgotamento. Este causado por uma dissertação no meio do caminho e uma série de mudanças de ordem pessoal, inclusive com uma mudança de casa.
Pois bem, feito essa breve explicação inicial, um outro fator me fez demorar era decidir sobre o primeiro texto, o da retomada. Pensei em muitos assuntos, ensaiei uns começos, mas nada me parecia interessante o bastante para falar, até o final de semana passado, quando me deparei com a abertura de processo do espetáculo Fractais, do Grupo Ninho de Teatro.
Esse trabalho em questão faz parte de uma trilogia que o grupo mergulhou com a intenção de pesquisar gênero, onde antes começaram um mergulho separadamente, mulheres e homens, e que agora se encontram numa mesma cena. O trabalho ainda está em finalização, como disse, vi a abertura de processo, mas dela já temos uma boa ideia do que vem pela frente. E é coisa boa viu!
Um primeiro ponto que vale citar é o novo momento que o Ninho vive, esse (me parece) é o primeiro espetáculo que nasce após algumas reformulações do grupo com saídas e entradas de integrantes, o que nunca é simples em um coletivo com 16 anos de atuação. Fractais representa esse novo momento não só pela nova composição de atrizes e atores agora majoritariamente racializados, mas também pela escolha de Onisajé para fazer a direção e dramaturgia do espetáculo. Onisajé que é uma importante referência para o teatro contemporâneo brasileiro com o seu Teatro Preto de Candomblé. Escolher ela para dirigir o trabalho é escolher alargar os horizontes poéticos e estéticos do grupo, que se reverberam na cena e no corpo dos artistas.
Somados a Onisajé temos o importante trabalho da assistente de direção Fabíola Nansurê e sua Oficina de Dança dos Orixás, e as formulações poéticas de Janaina Leite e Tieta Macau, além de uma longa equipe que envolve as dimensões da luz, cenografia, figurino, preparação corporal e outras demandas técnicas que envolvem a produção de um espetáculo.
Todo esse trabalho se materializa na potente ação dos atuadores – Monique Cardoso, Sâmia Ramare, Suzana Carneiro, Edceu Barboza, Elizieldon Dantas e Fagner Fernandes – que além da atuação assinam outras funções do espetáculos, com destaque para os textos que escrevem com Onisajé que, como dramaturga, faz a costura final que vai para a cena.
Num cenário minimalista e orgânico com longas esteiras de palha (ou ení) que tanto fazem o fundo do palco como são elementos móveis que os e as atuadoras utilizam durante o espetáculo, que criam uma cena a parte com as movimentações e composições que vão sendo feitas. Estão presentes também peças de barros (quartinha), bancos de madeira e espadas de reisado, que não só colaboram para a ilustração da dramaturgia, como trazem fisicamente elementos das religiões de matriz africana e do nosso Cariri encantado, que são duas marcas fortes da dramaturgia.
Os figurinos, igualmente simples e deslumbrantes, são compostos por saias que todas as pessoas em cena utilizam, em tons terrosos que remetem ao chão de nosso lugar, que me trouxeram tantas memórias… Todos utilizam colares (bem, não são bem colares, só vendo para entender) de contas feitos por cada um e na cabeça penteados deslumbrantes para as mulheres e durags para os homens.
Sobre a cena no geral, me encanta o espetáculo ser em duas línguas, sendo uma destas desconhecidas da maior parte das pessoas, o Iorubá, mas que ao mesmo tempo é uma língua que juntamente com outras vindas de África na diáspora contribuíram significativamente para o que é o nosso português brasileiro, ou pretuguês, como nos ensinou Lélia Gonzalez.
A presença dos cantos, danças e músicas, juntamente com essa língua estranha e familiar de certa forma misto de pretuguês e Iorubá, somados ao cenário, ao figurino e à alfazema (pelo menos foi o cheiro que me chegou) borrifada sobre nossas cabeças e mãos, geram uma composição muito bonita e encantadora, que nos põe quase que em movimento com as e os atuadores. O mistério (ou o imaterial) tão presente é talvez a linha que costura e sustenta tantas subjetividades em suas diferenças durante toda a peça que une a dimensão sociopolítica das questões de gênero apresentadas, a dimensão espiritual dos cantos, ritos, dos sonhos e desejos de cada um. E aqui não falo apenas sobre quem está na cena propriamente dita, pois na minha experiência a cena tomou conta e incorporou todos nós que estávamos no público. Como falou uma mulher que assistiu no mesmo dia que eu “as vezes eu me 'arrupiava' e não sabia bem o que era, mas não importava saber nesse lugar ocidental, pois eu sentia e isso já bastava”.
Para mim é um espetáculo que contribui socialmente, não só para as questões de gênero que discute objetivamente, mas, sobretudo, para um desacelerar, um abraçar o desconhecido e o imponderável, pois a vida é isso tudo que ainda não sabemos e que talvez nunca possamos compreender em sua completude. Algo de uma urgência grande em nosso mundo e que a arte pode colaborar tanto. O que vejo como elemento essencial para perceber o que nos aflige e esperançar novos caminhos, para mostrar as armas e mecanismos do capital e nos possibilitar sonhar com utopias de novos mundos e novas relações no laço social. Um espetáculo necessário. Estou ansioso pela estreia do espetáculo finalizado, por uma temporada para que eu possa desacelerar e abraçar o desconhecido com vocês mais uma vez.
Em tempo, vale dizer que o Ninho só pode construir esse espetáculo com uma super equipe de qualidade e sem sobrecarga de trabalho, com tempo para pesquisa e imersão por causa de uma política pública – Programa Funarte Retomada 2023 – Teatro, então viva a política pública séria e a serviço do povo trabalhador, defendamos as que existem e lutemos por mais, o que só é possível com a escolha de bons representantes políticos, então se liguem.
Viva o Grupo Ninho de Teatro e seus 16 anos de história e muita arte, que venham mais 16, mas que esses novos vocês possam fazer mais história e arte sem precisar de tanta luta, resistência e cobrança, que essa história possa vir a ser construídas pelo fortalecimento de um sistema nacional de cultura que seja verdadeiramente voltado para as trabalhadoras e os trabalhadores da cultura, que chegue em todo o território brasileiro.
*Lívio Pereira é trabalhador da cultura e militante social, escreve para o BdF há mais de um ano.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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Edição: Francisco Barbosa