Ceará

Entrevista

Povos de terreiro reforçam a importância de debater sobre racismo religioso nos dias de hoje

Nonato Nascimento conversou com o Brasil de Fato sobre o legado dos povos de terreiro e a luta contra racismo religioso

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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É importante dizer que toda a contribuição da comunidade de terreiro para a formação social brasileira foi historicamente perseguida. - Museu da Abolição

No último sábado, dia 07 de dezembro, o Centro de Formação e Capacitação Frei Humberto, em Fortaleza, recebeu o evento intitulado "Samba de Axé Levanta Terreiro". Um dos objetivos da ação foi debater as perspectivas e desafios das comunidades tradicionais de terreiro por políticas públicas de valorização e preservação dos povos de terreiro. E para falar sobre as lutas e conquistas e sobre a contribuição dos povos de terreiro para a arte, cultura e história do Brasil e do Ceará o Brasil de Fato conversou com Nonato Nascimento, Ile Axé Ofa Omi e militante do Movimento Negro Unificado (MNU). Confira.

Qual a contribuição dos povos de terreiro para a arte, cultura e história do Brasil e do Ceará?

A contribuição do povo de terreiro para a formação social brasileira é muito grande porque a gente demarca no campo da arte, da cultura e do fazer a história no Brasil, especialmente no Ceará e no Nordeste brasileiro, acho que é importante fazer essas demarcações. A contribuição do povo de terreiro, das comunidades de candomblé, das religiões afro-indígenas se dá em vários campos, no campo da arte, da cultura, da política, da saúde e das relações espirituais. Esse é o lugar que a gente ocupou historicamente, um lugar que foi invisibilizado, como sempre nos alertou Lélia González, uma mulher também de candomblé, uma mulher de Oxum, mulher que é uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), junto com Abdias do Nascimento, homem também que pensa essa realidade brasileira a partir do terreiro. 

Então é importante dizer que toda a contribuição da comunidade de terreiro para a formação social brasileira foi historicamente perseguida. A gente chega em 2024 tendo que lutar por políticas públicas de reparação histórica, de reparação histórica frente a intensificação das violências contra as comunidades tradicionais de terreiro, a intensificação das violências contra o povo de Santo, porque esse é o momento que o movimento de terreiro no Brasil, no Ceará, no Nordeste brasileiro, é bom que se diga, tem uma posição pública e essa posição pública das comunidades tradicionais de terreiro é demarcar essas contribuições e a demarcação dessas contribuições perpassa por espaços públicos, perpassa pela política, perpassa pela ocupação do parlamento, perpassa pela recuperação e memória ancestral daqueles que contribuíram na formação dessa sociedade, mas também que seguraram diversas comunidades frente à violência policial, frente a LGBTfobia, frente ao adoecimento mental da população negra. 

Então são essas as contribuições que as comunidades tradicionais de terreiro têm dado. 

Há ações por parte do poder público que garantam os direitos dos povos de terreiro ou que valorizem toda a tradição desse povo?

Acho que é importante, quando a gente fala sobre ações do poder público, o pouco que a gente tem hoje de política pública, de combate ao racismo religioso, que alguns também chamam de intolerância religiosa, mas como a gente é de uma militância de terreiro, comprometida, e que milita nessa questão, que está em caminhada nessa questão a gente sabe que é importante racializar, nós estamos falando de comunidades de terreiro, e a gente tem demarcadores e nosso demarcador e raça. A raça perpassa o candomblé, a raça perpassa a cultura de terreiro, a raça perpassa o nosso fazer político, a raça perpassa nossa ancestralidade.

Então, assim, se pega uma militante histórica da luta de combate ao racismo religioso como Mãe Beata de Iemanjar, uma mulher à frente do seu tempo, uma mulher que colocou diversas questões, desde o impacto do racismo religioso à proteção das vidas LGBTQIAPN+ dentro dos próprios terreiros, do combate à violência racial, do combate do avanço do racismo ambiental sobre as territorialidades das comunidades de terreiro, poder público segue sendo pautado por que a gente fala desse lugar de ousadia, de caminhada permanente, de caminhada contra o racismo religioso. Por que a gente fala daí? Para dizer das ausências do Estado, para dizer que o Estado ainda continua apostando em medidas, em políticas, em ações que não consideram as agendas inegociáveis que nós, comunidade de terreiro, apresentamos. E as nossas agendas, por que é que elas são inegociáveis frente ao poder público? Por que ela é inegociável? Porque ela fala das nossas vidas, são os nossos corpos, territórios, terreiros que estão expostos na sociedade. 

Eu falo lá no terreiro do Ofá Omi, no Ílé para T’ogum. Ali é uma comunidade de terreiro, uma comunidade negra, ancestral que conhece, sujeita de direitos, mas também que demanda especificidades e muitas vezes o poder público nos olha à margem, então a gente está mais em uma luta para reeducar o poder público, mas também ocupar esses espaços. Ocupar o poder público é uma demanda nossa. Como é que a gente ocupa a agenda pública? A agenda política, os partidos de esquerda colocando as nossas demandas e reeducando também esses lugares, esses territórios que historicamente foram dominados ou conduzidos por outras perspectivas, e a gente precisa também pautar com essas perspectivas que é a perspectiva de terreiro, e aí sim a agenda política, agenda pública ganha esse sabor, esse cheiro, esse fazer do terreiro.


O racismo religioso está enraizado, digamos assim. Ele está presente na sociedade brasileira e é importante a gente debater isso. / Ezequiela Scapini

Ainda há preconceitos a respeito dos povos de terreiro?

Preconceito, o que a gente chama de racismo religioso, de terrorismo religioso porque tem um componente aí que é importante a gente demarcar e colocar, que é a questão da raça. O terreiro é um território negro, é um território preto, é construção dessas presenças e essas presenças demarcam o imaginário racial no Brasil, demarca o sistema de justiça, demarca o fazer político, demarca as disputas do estado brasileiro, e aí as comunidades negras, de terreiro, os territórios de candomblé, as religiões afro-indígenas sempre foram afetadas diretamente por essa violência colonial estrutural. Quando a gente fala que ela é estrutural é para dizer que ela também não é só direcionada a um indivíduo, mas a toda uma coletividade. 

Essa é a disputa séria que a gente está fazendo em 2024 frente ao quadro de avanço das violências e violações de direitos humanos em territórios de comunidades de terreiro. Nós não estamos falando só de violência verbal, a gente está falando de grupos religiosos que adentram aos terreiros de candomblé no Brasil, no Nordeste e no Ceará e ameaçam, atentam à vida das lideranças religiosas que majoritariamente são mulheres, mulheres negras, mulheres periféricas, mulheres trans, pessoas LGBTQIAPN+. Esses demarcadores dizem muito de como o racismo religioso se articula, como racismo religioso determina ou pensa em determinar essas existências. 

Então, assim, é importante dizer que o racismo religioso nos afeta individualmente porque afeta a nossa saúde, por isso que o debate de saúde pública, a defesa intransigente do SUS, tudo isso é interessante, mas é importante dizer também que a gente quer debater uma justiça sem racismo religioso, uma justiça que olhe para os territórios negro, terreiro de outra forma, de outro olhar, de outro lugar. 

É preciso defender as vidas negras, é preciso defender as vidas de terreiro, essa é a nossa agenda inegociável, que a gente não pode abrir mão por qualquer coisa e nem dá, porque ela fala das nossas existências. Então, dizer que a sociedade brasileira é sim marcada e demarcada pelo racismo religioso, por isso que a nossa luta se dá dentro do movimento social de terreiro. 

Na sua opinião, o que contribui para a existência desses preconceitos? Quais ações são realizadas para acabar com esses preconceitos?

O racismo religioso está enraizado, digamos assim. Ele está presente na sociedade brasileira e é importante a gente debater isso. Os índices de violência contra as pessoas de religião de matriz africana são visíveis, está dado. A sociedade brasileira como um todo, as políticas públicas precisam ter atenção para esse fator que determina. Ele é determinante também na saúde coletiva de diversas pessoas e nos seus diversos territórios. O racismo religioso tem sua continuidade, é alimentado em uma sociedade que ela tem uma referência na história única, uma história única, em uma língua única, em uma religião única, numa perspectiva única de mundo e quando a gente, comunidade de terreiro, com o nosso saber, o nosso fazer, nosso ser, nossa presença e essa estética que é em volta do inquice, do orixá, do vodum, do Encantado, do caboclo isso bagunça a cabeça desse pessoal, e esse pessoal logo quer nos eliminar e é aí onde a gente entra: “Nossas vidas importam”, a vida do povo de terreiro importa, porque aqui é núcleo em que muitos de vocês se recuperam, é aqui onde vocês renascem, é aqui que a gente acolhe, é aqui que a gente abraça. 


Entre as questões que levaram a fundação do Movimento estão o caso do feirante Robson Silveira da Luz, que foi preso, torturado e assassinado pela polícia da ditadura militar em 1978. / Foto: Divulgação / MNU

Você é militante do Movimento Negro Unificado (MNU). Fala um pouco da relação do movimento com as lutas dos povos de terreiro.

Nós somos o Movimento Negro Unificado, temos 46 anos de luta e resistência. A gente nasce em luta contra os horrores da ditadura militar no Brasil. Importante dizer isso, esse é o demarcador ali quando o movimento negro se organiza e funda o MNU na escadaria do Teatro Municipal em São Paulo. Em plena ditadura militar o movimento negro ousou denunciar os horrores da violência policial contra as comunidades negra, os horrores do racismo racial e da sua violência.

As pessoas que fundam o Movimento Negro Unificado, que organizam o Movimento Negro Unificado são pessoas de terreiro, são pessoas de candomblé, de umbanda. É importante colocar isso. Então, o movimento de terreiro e o Movimento Negro Unificado tem profunda relação. Eu sou uma pessoa de terreiro e sou militante do Movimento Negro Unificado com muito orgulho, e lá dentro a gente tem uma coletividade de pessoas de terreiro, a gente organiza espaços próprios, faz o debate, coloca a agenda na roda, ou melhor, na gira, um giro de agenda, que para nós é fundante quando a gente afirma que é importante a defesa intransigente do patrimônio material e imaterial do povo negro e das religiões de matriz africana e indígena. Esse patrimônio é nosso. Ele pertence a nós. Ele nos levou até aqui, nos deixou de pé, deixou essa raça de pé. Então a gente reivindica, a gente constrói.

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Edição: Camila Garcia