Ceará

desmonumentalização

A importância da memória social para que crimes contra a humanidade não voltem a acontecer

Alexandre Mourão conversou com o BdF sobre a realização de intercâmbio artístico a partir da memória do holocausto

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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Durante o intercâmbio, o Coletivo Aparecidos Políticos produziu um Diário de Bordo, que pode ser acompanhado em parte no perfil do Coletivo nas redes sociais. - Foto: Reprodução Coletivo Aparecidos Políticos

Entre os dias 03 e 18 de setembro, o Coletivo Aparecidos Políticos realizou o intercâmbio intitulado “Desmonumentalização da ditadura brasileira: um intercâmbio artístico a partir da memória do holocausto”. A viagem durou 15 dias e foi um intercâmbio artístico a partir da memória do holocausto na Alemanha e na Polônia em parceria com a artista e diretora alemã Christiane Mudra. O Coletivo irá produzir o conceito de uma obra artística e um relatório de ideias para o novo projeto artístico e museográfico da Galeria da Liberdade, em Fortaleza, que antigamente abrigava um dos maiores mausoléus em homenagem a um ditador da América Latina: o ex-mausoléu Castelo Branco. E para falar sobre toda essa ação o Brasil de Fato conversou com Alexandre Mourão, psicólogo, professor da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão e integrante do Coletivo Aparecidos Políticos. Confira.

O que foi o intercâmbio Desmonumentalização da Ditadura Brasileira: um intercâmbio artístico a partir da memória do holocausto?

A ideia do intercâmbio foi conhecer a experiência alemã em relação à memória social do nazismo, um estado de exceção, um período de arbítrio e de autoritarismo, e a partir também da experiência de uma artista alemã chamada Christiane Mudra, que é também diretora e que tem, através da e com a arte desenvolvido peças de teatro, intervenções artísticas com essa temática, que é o mesmo enfoque do nosso Coletivo Aparecidos Políticos também, mas em relação a um estado de exceção muito diferente, claro, que foi a ditadura militar brasileira. Então, a ideia do intercâmbio foi conhecer as experiências alemãs em relação à memória social, conhecer os lugares de memória, como os dois campos de concentração, um deles de Auschwitz-Birkenau, um dos mais conhecidos, na Polônia, o outro campo de concentração de Dachau, em Munique e, por sua vez, o Memorial do Holocausto em Berlim. Porém, a gente acabou que visitou também outros lugares de memória.

A partir da visita desses lugares, a partir da interação que a gente tinha com essa artista, com essa diretora, a gente estava querendo levantar algumas informações, exemplos artísticos e arquitetônicos de como aquele país trabalha a memória e a partir daí a gente elaborar um projeto artístico de ocupação, alguma proposta de uma obra artística, mais especificamente falando, para o ex-mausoléu Castelo Branco que tem no Ceará.

Então a gente vai trazer uma proposta para ser entregue a algum representante do governo do estado do Ceará no intuito de ter ali uma obra que entrasse ou que trouxesse algumas discussões sobre isso, para o ex-mausoléu, e a gente também desenvolveu durante esse período uma espécie de diário de bordo falando um pouco da nossa visita nos locais, que foi colocado tanto nas redes sociais como também em um livro que a gente juntou, no caso, um caderninho que a gente ficou colocando as informações.


No intercâmbio foram visitados locais como o Museu do Holocausto, em Berlim, o Espaço de Memória do Campo de Concentração Dachau, em Munique e o Museu Auschwitz-Birkenau, em Oswiecim. / Foto: Marquinhos Abu

Qual a importância e qual o objetivo da realização desse intercâmbio?

Primeiro, a gente está vivenciando um período global de crescimento da extrema direita, de movimentos nacionalistas, e quando a gente se debruça sobre um período histórico em que também esses movimentos tiveram uma certa força, a gente entra naquela discussão sobre aquela insígnia que se repete muito que é o “lembrar para não repetir”, ou então, “para que não se esqueça, para que nunca aconteça”. Conhecer um pouco ou retomar um pouco um momento histórico passado para trazer para o contemporâneo a discussão sobre o “olha como foi” e não repetir novamente. Então, a importância central que a gente vê nesse nosso projeto de intercâmbio é justamente essa, e aí com esse trabalho que a gente desenvolve com a arte, a gente poder fazer com que as pessoas reflitam sobre isso.

E aí esse é o objetivo, vamos dizer, mais estrutural do intercâmbio, trazer essa discussão para a sociedade brasileira, mais especificamente no Ceará, sobre a importância de também se criar lugares de memória, se criar uma memória social ligada, justamente, a essa não repetição. E no contexto brasileiro, a gente trazer a importância também de levantar o debate da chamada memória, verdade e justiça, do que foi o período da ditadura militar. Então, esse seria o objetivo, a meu ver, mais estrutural. E o específico, como falei na primeira pergunta, é justamente elaborar uma proposta artística de memória para o ex-mausoleu Castelo Branco, que fica lá em Fortaleza.

Como surgiu a ideia para a realização desse?

A ideia para realização de intercâmbio surgiu a partir de um edital que foi publicado pela Fundação Nacional de Artes Visuais (Funarte), do Ministério da Cultura, de intercâmbio artístico. São editais públicos que se abrem para a sociedade brasileira como um todo e a gente estava pensando um pouco “poxa, a gente já conheceu a experiência da Argentina e do Chile em relação a reparação” e a gente estava querendo conhecer também essa experiência alemã, que para muitos de nós é uma referência para essa criação dessa memória social, dessa conscientização também sobre o crime do nazismo.

Então a ideia surgiu a partir daí. A gente tinha feito um intercâmbio também, na verdade, tinha feito um trabalho com essa artista chamada Christiane Mudra, em 2017, ela foi em Fortaleza junto a um grupo de teatro chamado Teatro Máquina e a gente também participou dessa intervenção que ela fez em Fortaleza, que foi uma intervenção que ela se debruçou sobre a questão das vigilâncias digitais, enfim. E aí a gente já tinha esse contato com ela, então com o intercâmbio a gente pensou, “poxa, vamos tentar fazer alguma coisa em conjunto com essa artista lá na Alemanha, juntamente com essa visita nesses espaços”.

Então a gente pensou em juntar, conhecer a experiência alemã do quê que eles fazem em relação a lugares de memória para tentar trazer alguma coisa para o Ceará, a partir também desse diálogo com essa artista. Então, esse intercâmbio surge nesse contexto prévio, e aí finalmente deu certo, foi uma proposta aprovada entre mais de três mil propostas do Brasil todo e foram só 47 selecionados.

O que seria desmonumentalização em um termo geral e o que seria desmonumentalização da ditadura brasileira?

A ideia da desmonumentalização, em termos gerais, é você dar uma nova configuração ao tanto de monumentos que existem relacionados a períodos de arbítrio ou então a personalidades que foram personalidades autoritárias, personalidades que promoveram genocídio, personalidades que promoveram crimes, de grave violação de direitos humanos, a esse excesso de monumentos também ligados a hierarquias militares. Então, basicamente é essa ideia de você ou reconfigurar, ou até mesmo, em alguns casos, retirar essas homenagens de espaços públicos sem querer dizer que isso vai apagar a história, né? Que é a argumentação que geralmente surge contra isso. A gente não quer apagar a história, pelo contrário, a gente quer fazer as pessoas conhecerem a história, para essa história ser reconfigurada num modo diferente. Porque no contexto brasileiro, como é que a gente vai discutir democracia, fazer uma crítica hoje às tentativas recentes que tiveram de golpe de estado, de intervenção militar se a gente vê em boa parte das ruas do país uma homenagem a torturadores, a presidência de ditadura militar, no caso de Fortaleza a gente tem mais de trinta logradouros públicos, ruas, prédios que fazem homenagem a agentes violadores de direitos humanos.

Quais ações serão desenvolvidas após esse intercâmbio?

Então, a fase de visita presencial, vamos dizer assim, ela correu de 03 a 18 de setembro e como continuidade dessa ação a gente pretende elaborar agora um projeto de entrega para algum representante do governo do estado do Ceará de uma obra artística ou então alguma proposta museal para o ex-mausoléu Castelo Branco. Então essa vai ser, vamos dizer, uma das entregas do nosso produto. Vai ter continuidade nesse sentido, porque a gente entende que mesmo terminado esse projeto da Funarte, a gente vai estar ainda ali tentando viabilizar justamente parte da ideia ou a ideia que a gente trouxe para o ex-mausoléu.


De 03 a 18 de setembro, o Coletivo Aparecidos Políticos realizou o intercâmbio “Desmonumentalização da Ditadura Brasileira: um intercâmbio artístico a partir da memória do holocausto”. / Foto: Divulgação Coletivo Aparecidos Políticos

O que é o Coletivo Aparecidos Políticos?

O Coletivo Aparecidos Políticos surgiu em 2010, depois da gente ter presenciado a cerimônia de velamento do corpo do até então desaparecido político Bergson Gurjão Farias, que foi um cearense, e a gente presenciou aquela cerimónia, a gente ficou muito emocionado com aquele fato, e ao sairmos da universidade, que foi o local onde teve a cerimônia, a gente observou que na cidade de Fortaleza havia muitas homenagens, prédios públicos e ruas aos agentes que fizeram Bergson desaparecer, algum deles, né? Por exemplo, desde uma creche com o nome do Presidente Médici até várias ruas com o nome de Castelo Branco. 

A gente também estava, na época, fazendo parte do grupo de pesquisa chamado Meio Fio de Pesquisa e Ação, que discutia a chamada Arte Pública Relacional, alguns de nós éramos militantes do movimento estudantil e a gente resolveu pensar na ideia de um grupo, um coletivo, que fizesse intervenções urbanas artísticas nesses locais. E aí o Coletivo Aparecidos Políticos iniciou a partir daí.

A gente foca muito nessa discussão sobre a memória do que foi a ditadura militar para a não repetição, e articulando também com alguns momentos atuais políticos, enfim, nessa ideia de pensar a arte e a política, a memória em uma perspectiva da criatividade.

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Edição: Camila Garcia