Ceará

Violência no Campo

Após 14 anos do assassinato, júri do caso Zé Maria do Tomé ocorre nesta quarta-feira (09) em Fortaleza

Renato Roseno conversou com o Brasil de Fato sobre o processo e a importância da realização desse júri.

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

Ouça o áudio:

No 21 de abril de 2010, Zé Maria do Tomé foi alvo de emboscada, sendo executado com mais de 20 tiros.
No 21 de abril de 2010, Zé Maria do Tomé foi alvo de emboscada, sendo executado com mais de 20 tiros. - Marilu Cabañas

No 21 de abril de 2010, na localidade do Sítio Tomé, quando estava retornando para casa, José Maria Filho, agricultor e defensor dos direitos humanos na Chapada do Apodi, foi alvo de emboscada, sendo executado com mais de 20 tiros. Depois de 14 anos do seu assassinato ocorrerá o julgamento de um dos envolvidos no crime. A ação está marcada para esta quarta-feira, dia 09 de outubro. Mas o que representa a realização desse júri? Por que demorou tanto para acontecer? Para responder essas e outras perguntas o Brasil de Fato conversou com Renato Roseno, Deputado Estadual pelo Psol e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará que vem acompanhando todo o processo em busca de justiça para Zé Maria. O Deputado  acompanha os conflitos e os impactos do agronegócio na região do Vale do Jaguaribe e vai assistir ao julgamento. Confira. 


Renato Roseno, deputado estadual pelo Psol e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. / Foto: Divulgação

Quem foi Zé Maria do Tomé?

Zé Maria é um líder camponês, ambientalista, fruto, exatamente, desse processo contraditório, cheio de injustiças que é a expansão do agronegócio no Brasil, que chega a novas fronteiras. O Zé Maria, como você mesmo disse, Tomé é uma comunidade rural na Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte e Quixeré, no Apodi cearense. A chegada do agronegócio vem com muito subsídio estatal, ou seja, infraestrutura hídrica bancada pelo Estado, pelo governo federal, benefícios tarifários da água e na energia, isenção fiscal dos agrotóxicos. Vamos lembrar que veneno não paga imposto nesse país. Então é o que a gente chama de “contrarreforma agrária”. Obviamente isso gera concentração de terra, concentração de água e chega junto também a chuva de veneno, que é a pulverização aérea de agrotóxicos e em razão disso, as comunidades passam a sofrer esse processo e surge uma liderança, uma liderança social camponesa, que é o Zé Maria, Zé Maria da comunidade do Tomé. 

Já no final é dos anos 1990 e início dos anos 2000 começam as movimentações contra a chuva de veneno e contra esse modelo, esse pacote tecnológico do agronegócio, que é um pacote social também, né? Porque ele concentra terra, ele concentra água e ele concentra benefícios do poder público. Esse agronegócio não vive sem o subsídio do poder público. 

Já em 2007, 2008 Zé Maria passa a liderar grandes movimentações de denúncia do processo de chuva de veneno e dos malefícios que isso vem causando, ou seja, a morte de pequenos animais. Na medida que o avião passa, o avião vai deixando um rastro de veneno que vai mantando pequenos animais, que vai contaminando a vida das pessoas, os poços artesianos, as pessoas passam a ter dermatites, problemas neurológicos, já começam a se registrar os aumentos de puberdade precoce, muito associado ao agrotóxico, ou seja, crianças, meninas, com 2 ou 3 anos com pelos pubianos já, câncer, e o Zé Maria passa a fazer o que a gente chama de “vigilância popular em saúde”. Ele começa a denunciar: “olha, esse modelo está gerando malefício, está gerando prejuízo”. As mulheres, por exemplo, quando ia passar o avião tinham que tirar a roupa do varal, porque a roupa ia ficar impregnada de veneno, tamanha era a proximidade da calda tóxica e a deriva da calda tóxica do quintal das pessoas.

E já em 2007, 2008, Zé Maria passa a lutar contra isso, e em 2009, a partir do movimento dele, ele consegue aprovar, ele não era vereador, mas ele consegue fazer um processo de mobilização importante e conseguem aprovar uma lei municipal na Câmara Municipal de Rio Grande do Norte proibindo a pulverização aérea de agrotóxicos. Obviamente isso revoltou o agronegócio. É bom lembrar que o agronegócio não é pop, nem é moderno, quando ele quer ser violento ele sabe ser violento, veja o que o agronegócio está fazendo no Brasil. A violência no campo é retrato dessas contradições. Nós estamos vendo vários ataques ao meio ambiente também e isso também é uma forma de violência. 

Em 2010, às 15h do dia 21 de abril, em uma emboscada ele é assassinado com 20 tiros e todo o processo que se arrastou a partir de então, a investigação policial, que a investigação policial foi muito bem feita, é necessário elogiar o processo de investigação policial, o trabalho do Ministério Público, o trabalho do judiciário, todos em uníssono dizem: “Zé Maria foi morto. Ele foi assassinado em uma emboscada”, portanto, um crime político, um crime de pistolagem em razão do movimento que ele fazia contra a pulverização aérea. Veja que por mais que se diga que é moderno, na verdade, esses setores, eles quando se veem desafiados, eles não são, não se constrangem de utilizar a violência.


Realização da Semana Zé Maria do Tomé, em Limoeiro do Norte / Melquíades Júnior

Por que houve tanta demora na realização desse júri?

Foram 14 anos, e vamos lembrar que o executor, chamado Boião, morreu em 2010 em uma troca de tiros, em uma situação suspeita, ele foi o executor, dois mandantes, e aí é necessário falar um pouquinho de direito. No processo de homicídio doloso, ou seja, o homicídio com a determinação de matar, que são os processos que vão a júri, você tem a “denúncia” e depois a “pronúncia”. O que é a denúncia? É o início da ação, é quando o Ministério Público diz: “olha, eu estou ofertando uma denúncia para iniciar a ação penal”. O judiciário, o magistrado ou a magistrada, no caso foi uma magistrada. Ela, no caso de homicídio doloso, constatando os indícios de materialidade e autoria de um homicídio doloso ela faz uma sentença de pronúncia. Ela vai dizer o seguinte: “olha, fulano e fulano, em razão da oferta da denúncia, do que já foi acostado nos autos dos depoimentos, devem ir ao conselho do júri, ao tribunal do júri”, que é o júri popular que julga homicídio doloso. 

A sentença de pronúncia... ela sentenciou dois mandantes, que aí, isso tudo que eu estou colocando são processos públicos, portanto, eles estão à disposição da sociedade. É necessário que a sociedade saiba disso. Dois mandantes, um proprietário, na localidade de Limoeiro do Norte, o gerente desse proprietário e também esse que vai ao banco dos réus, intermediário, o outro intermediário e o outro intermediário faleceram, então dois intermediários faleceram, o executor faleceu. O que que aconteceu com os mandantes? Por vergonha que o Tribunal de Justiça, na nossa avaliação, tenha despronunciado os mandantes, ou seja, vai ao banco dos réus um intermediário, os mandantes não vão ao banco dos réus, nós vamos lutar por isso ainda, para que o mandante vá ao banco dos réus. 

Por que demorou tanto? Bom, primeiro a investigação foi difícil. É uma investigação difícil, é um crime de execução, ele foi vítima de uma emboscada, mesmo que às 15h, era um feriado, um grande número de tiros, um único executor. A viúva do executor disse que, de fato, ele agia sozinho, mas depois, graças a investigação policial muito bem feita foram encontrados três intermediários que fizeram a contratação deste executor e dois mandantes. A investigação conseguiu chegar, inclusive, a toda essa rede, muito em razão da quebra de sigilo telefônico, das chamadas telefônicas entre eles. 

Bom, ele foi assassinado com 25 tiros de calibre ponto 40, naquele momento era um calibre de uso restrito aqui no Brasil. Foram feitas mais de 40 inquirições, quebra de sigilo telefônico, perícia com micro comparação balística, ou seja, o trabalho policial foi bem feito. A defesa pediu para desaforar. O que é que é isso? Desaforar? É quando você pede para retirar o júri de um foro, de um lugar para colocar em outro foro. Então foi desaforado em 2023 para Russas e depois, em Russas, o magistrado de Russas entendeu que também não tinha condições de ofertar segurança ao júri e foi desaforado para a comarca de Fortaleza. 

Eu tenho acompanhado desde o começo. No dia seguinte ao assassinato eu estive em Limoeiro do Norte, ou seja, ele foi assassinado no dia 21 de abril, no dia 22 de abril eu estava em Limoeiro do Norte, houve uma grande comoção. Quero aqui fazer dois destaques. O primeiro destaque é da família. Quero falar da viúva, suas duas filhas e seu filho, eles sofreram um abalo muito grande, mas possuem uma firmeza, uma altivez, uma dignidade gigantescas e também o Movimento 21 de abril, o M21, um movimento que reúne movimentos camponeses, o MST, a Cáritas, pesquisadores, todos eles e, desde então, o M21 vem lutando por justiça. 

Eu entrei aqui na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará em 2015, foi meu primeiro mandato em 2015. Em fevereiro de 2015 eu dei entrada no Projeto de Lei para proibir a pulverização aérea de agrotóxicos em homenagem, inclusive, ao Zé Maria do Tomé. Essa Lei foi aprovada depois de quatro longos anos difíceis de tramitação e leva o seu nome, que é a Lei Zé Maria do Tomé. 

É muito importante lembrar aqui também o papel das entidades nacionais na cobrança por justifica, inclusive, estivemos com dois desembargadores, o grupo de entidades de direitos humanos, pastorais, parlamentares, quero aqui destacar também a presença do deputado Missias no MST conosco nessa luta para que esse júri fosse logo marcado. Vai ao banco dos réus, dia 09 de outubro, um dos intermediários.

Tudo isso que você relatou foram todas as etapas desse processo ou tiveram outras etapas?

Não era para ter demorado tanto. A violência política no campo é demorada porque ela envolve gente poderosa. A gente está falando de um grande empresário do agronegócio, que tem ligações políticas, tinham ligações muito poderosas à época, portanto, e ele e o seu braço direito foram saindo do processo no Tribunal de Justiça, inclusive, para nós isso é vergonhoso, porque quem vai sentar no banco dos réus é o elo mais fraco dessa cadeia, mas nós queremos ir atrás do elo mais forte dessa cadeia, porque obviamente não dá para entender que isso possa ser naturalizada entre nós. Se houve um crime a mando teve um executor, teve um contratante e teve um mandante. Como é que a justiça vai, portanto, agora sentenciar, possivelmente o intermediário sem que o mandante do intermediário, porque assim... se a gente reconhece que houve um intermediário há de se reconhecer que alguém contratou o intermediário para contratar o executor.


Zé Maria do Tomé lutava contra a pulverização aérea de agrotóxicos. / Foto: ALCE

E quais são as expectativas para esse júri?

O Brasil inteiro está olhando isso. A ouvidora nacional de assuntos agrários, a desembargadora Cláudia Dadico estará presente, o Ministério da Justiça, o Ministério dos Direitos Humanos, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, as organizações nacionais da Via Campesina, uma grande movimentação. Agora assim, para mim, a grande questão é a justiça acontecer. Essa família está com essa ferida aberta. Eu ouço muito a Marcinha, que é uma pessoa de uma dignidade, de uma fortaleza imensa, que é a filha mais velha de Zé Maria. Ela diz assim: “olha, vocês dizem ‘Zé Maria presente’, mas meu pai não está presente. Meu pai morreu assassinado”. O filho do Zé Maria tinha 4 anos, portanto, ele perdeu o pai na infância, e isso causou um dano pessoal irreparável. Nenhuma sentença penal condenatória porventura vai reparar isso.

Da última vez que eu estive com a família nós estivemos, inclusive, na frente de um desembargador pedindo a celeridade no julgamento do desaforamento em razão, inclusive, da semana do júri e lá a família disse: “Olha, a gente quer que o julgamento aconteça, seja ele qual for o resultado não dá para essa ferida ficar 14 anos aberta”.

O que é que representa a realização desse júri?

Primeiro, eu quero dizer que a impunidade não deve ter vez em uma democracia. Por mais poderoso que seja o mandante, ele conseguiu sair do processo, mas eu repito, há um mandante, o intermediário, o elo mais fraco é quem está indo ao banco dos réus, mas, obviamente, todo mundo tem que responder. O executor faleceu em 2010 e outros dois intermediários também faleceram, resta agora esse intermediário e dois mandantes que saíram do processo por razão de toda essa lamentável situação de injustiça que percorre o Brasil. 

O que é que a gente espera? Espera-se justiça para o Zé Maria e espera-se que o mandante seja revelado e que, obviamente, seja também responsabilizado, mas mais do que isso, eu aprendi com o Movimento de Memória, Verdade e Justiça, para que nunca se esqueça para que nunca mais aconteça. O M21 é também muito responsável por guardar essa imensa memória desse fato trágico que marcou o Ceará e também o Brasil. O Brasil inteiro vai estar olhando para cá. Vem representações do Brasil inteiro para acompanhar esse júri.

Qual é a importância ou o papel dos movimentos populares do campo, como o próprio M21 que você citou para a realização desse júri?

A força, ou seja, a força democrática no sentido de dizer que não vão silenciar diante da injustiça e da violência. Veja, o Brasil e o Ceará já foram terra de muita pistolagem. Vamos lembrar que já houve muito pistoleiro no Brasil e no Ceará e que muitas vezes, os donos da terra contratavam exércitos particulares, executores particulares e ficavam por isso mesmo. É necessário dizer que esse tempo acabou e que os movimentos populares do campo, auto-organizados reclamam paz no campo, e a paz é fruto da justiça. O que causou a morte de Zé Maria foi a arrogância do poder de dinheiro, foi a arrogância do poder do agronegócio que acha que pode tudo, inclusive, contratar pistoleiro para matar um camponês que estava lutando contra a pulverização aérea.

Essa família nunca quis vingança, ela quer justiça. Justiça é diferente de vingança, justiça é o direito à palavra, o direito a ter resposta, o que essa viúva, o que os seus três filhos querem, o que a sociedade quer, o que o movimento social camponês quer, o que o M21 quer não é vingança, a vingança não é da nossa gramática, a nossa gramática é a gramática da justiça e nós queremos que a justiça seja feita para que, obviamente, os mandantes e intermediários paguem na medida das suas responsabilidades, mas também para que nunca mais aconteça.

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Edição: Camila Garcia