A questão central para o planejamento urbano está em como recuperar o ciclo hidrológico natural.
São pautas frequentes na imprensa fortalezense os alagamentos, denunciando-se não apenas a necessidade de manutenção ou mesmo de ampliação de galerias pluviais, como, às vezes, a “falta de planejamento”. Embora tenham alguma legitimidade, a validade dessas ponderações esbarra em uma interpretação limitada do problema, se não for apontada sua principal causa: a impermeabilização do solo, resultado da ocupação predatória do território que delineia a cidade.
Os alagamentos têm adquirido maior interesse público pela ameaça de eventos climáticos extremos, a exemplo dos índices pluviométricos inéditos que atingiram o país, enfatizando a necessidade de gestores urbanos repensarem o manejo de águas pluviais. Nesse contexto, caberia discutir como o adensamento construtivo impermeabiliza o solo a ponto de atrapalhar substancialmente a drenagem das chuvas por infiltração. Impactos ambientais significativos ocorrem tanto sobre o ecossistema quanto sobre a qualidade de vida. Além dos alagamentos, são também importantes a redução do nível do lençol freático e o aumento das ilhas térmicas urbanas, questões evidentes em Fortaleza.
No período chuvoso, não infiltrando no solo, as águas são escoadas superficialmente direto para os fundos de vale, que são os leitos de rios e riachos, permanentes ou intermitentes. A situação é mais dramática por conta da lógica de “afastamento” rápido das águas pluviais que historicamente orientou obras de drenagem, com retificação e canalização, muitas vezes estrangulando cursos d’água em galerias sob as vias. Se a drenagem artificial já foi eficaz, hoje é certo que o “afastamento” das águas pluviais não se realiza como tal. Pelo tamanho que a cidade atingiu, o que acontece é, antes, o deslocamento hídrico para bairros mais baixos, aumentando sua vulnerabilidade a enchentes. Ademais, a canalização retira dos cursos d’água os antigos meandros – que são espaços de inundação natural, reduzindo a velocidade de escoamento –, contribuindo para o transbordamento quando há uma grande contribuição pluvial de uma só vez.
Já na estiagem, a combinação entre drenagem artificial e solo impermeável leva à diminuição da água no subsolo. Pela baixa recarga natural do lençol freático, a vazão dos cursos d’água se reduz drasticamente, o que, associado ao despejo de esgoto e detritos, diminui o oxigênio disponível para as espécies aquáticas e acelera a eutrofização e o assoreamento.
O problema também impacta a vegetação. Com o lençol freático baixo, fica mais difícil para as árvores alcançarem a água necessária à sobrevivência e aquelas recém-plantadas dependerão de regas mais frequentes, por períodos mais extensos, até que suas raízes atinjam a umidade subterrânea. Além disso, a concentração de calor nas superfícies de pedra, concreto e asfalto acentua as necessidades de água pelas plantas, incrementando o ônus de sua manutenção.
Portanto, a questão central para o planejamento e gestão urbanos está em como recuperar, minimamente, o ciclo hidrológico natural, mitigando alagamentos e aridez intraurbana. Mas, sobre recuperação ambiental, as ações públicas em Fortaleza são ainda contraditórias…
É louvável que o Executivo municipal venha trocando o asfalto por blocos intertravados em várias vias, o que, além de aumentar a permeabilidade do solo, retém significativamente menos calor. Também, a implantação de wetlands (lagoas artificiais rasas) em trecho do Parque Rachel de Queiroz foi uma inovação local no tratamento biológico e controle da velocidade de escoamento das águas do Riacho Alagadiço, contrapondo-se à lógica de afastamento rápido.
Entretanto, tais medidas não passarão de paliativas caso a impermeabilização do solo não seja gerida integralmente no espaço urbano enquanto um problema central. Primeiro, porque os intertravados necessitam, no assentamento, de compactação do solo para garantir e prolongar a estabilidade mecânica do pavimento, aguentando o peso de veículos – o que já reduz seu desempenho na infiltração pluvial. Segundo, a maior parte do espaço urbano brasileiro é composta por terrenos – e não por vias e praças, que perfazem cerca de um terço dos loteamentos, apenas.
Assim, recuperar a capacidade de infiltração pluvial demanda também o controle da taxa de permeabilidade legalmente imposta a todas as propriedades. Ora, é visível o nível de ocupação total e concretagem do solo de terrenos de estabelecimentos comerciais e logísticos substitutos de antigas casas, especialmente em áreas centrais de Fortaleza. Ainda, o asfaltamento de vias e a construção de prédios e condomínios horizontais persistem sobre as dunas, mais especificamente na Praia do Futuro, tipo de relevo que é uma verdadeira “esponja” de absorção de águas pluviais: mesmo sendo uma zona de interesse ambiental na lei, a compactação e a impermeabilização do solo continuam sendo ações predominantes ali.
Vale destacar que Fortaleza nem mesmo tem as praças que deveria. Uma boa parte do parcelamento legal negligenciou a dotação adequada de áreas públicas – veja-se a própria Aldeota, com 388 hectares e apenas quatro praças. Além disso, locais destinados a praças serviram historicamente de reserva fundiária para equipamentos sociais e religiosos, sedes de associações profissionais ou foram apropriados até pela produção imobiliária de mercado. Um exemplo da última década foi a cessão de um bosque instituído pela lei 4513/1975 para a sede da OAB-Ceará. Outro caso, famoso na imprensa, foi a Praça Barão de Passagem: criada pela lei 1671/1960, na esquina das avenidas Antônio Sales e Senador Virgílio Távora, deu lugar a dois condomínios residenciais. Imaginem então os assentamentos informais, como as favelas, bem mais distantes de qualquer índice equilibrado de espaços livres verdes!
Na esteira da tragédia ambiental, a drenagem artificial ainda protagoniza ações contra alagamentos: por exemplo, nas avenidas de fundo de vale em bairros valorizados, como a Heráclito Graça e a Aguanambi. A primeira, que passa sobre o leito do histórico riacho Pajeú, está sob obras ao custo de R$24 mi, devendo-se construir uma galeria de armazenamento de 14m³, equivalente a treze piscinas olímpicas (dados da PMF). Ofuscada pelo brio do “piscinão”, praticamente não se menciona a concretagem do leito do Pajeú, cujos terrenos marginais continuaram a ser adensados na última década. Em vez de uma área de amortecimento ambiental no último plano diretor, no entorno do Pajeú se mantiveram os mais permissivos indicadores de ocupação na cidade, bastando um passeio atento para percebermos os novos condomínios verticais com muros e garagens erguidos a poucos metros do riacho.
Já na Avenida Aguanambi, com recursos de R$ 95 mi do BID (dados da PMF), o canal do riacho que dá nome à avenida foi duplicado, acelerando o deslocamento hídrico para o Lagamar, uma Zona Especial de Interesse Social vulnerável à oscilação das marés que sobem o rio Cocó. Soma-se a isso a proposta corrente na revisão do plano diretor de eliminar a já exígua faixa de preservação do Aguanambi e aumentar potenciais construtivos no entorno. O desprezo pela necessidade de uma faixa de amortecimento ambiental para ele e outros riachos canalizados, como o Maceió e o Pajeú, apenas deixa dúvidas sobre a ética urbanística que rege as proposições do município: afinal, a quem cabem o ônus e o bônus desse planejamento refém do preço do solo?
Diante desse quadro, o que deveria pautar o futuro exercício de mandatos da Câmara e Prefeitura de Fortaleza?
Primeiro, a gestão deve reforçar o controle sobre a taxa de permeabilidade dos terrenos. Não se justifica que, com o avanço das geotecnologias, a fiscalização desse importante indicador urbanístico ainda não se realize a contento. Além disso, o Município deve de uma vez por todas parar de desafetar áreas que já estão legalmente destinadas a serem espaços livres públicos.
Segundo, deve haver uma mudança no paradigma local de planejamento urbano visando a recuperação ambiental do solo, com implantação de mais áreas verdes, públicas e privadas, manutenção e recuperação do leito natural de rios e riachos. Devem ser consideradas no zoneamento faixas de preservação e amortecimento ambiental a todos os cursos d’água: impressionantemente ainda há alguns, inclusive em leito natural, que carecem de proteção regulamentada em Fortaleza; da mesma forma, reconhecer em lei todas as dunas ainda preservadas. Na criação de áreas públicas, viria a calhar a regulamentação do direito de preempção, que favoreceria o Município na aquisição de terras estratégicas à formação de corredores verdes, por exemplo, nos fundos de vale. A própria taxa de permeabilidade ora exigida deveria ser revista à luz do nível atual de impermeabilidade e da capacidade drenante de cada tipo de solo, segundo um zoneamento condicionado pelas sub-bacias hidrográficas que recortam o município.
*Marcelo Mota Capasso, Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unichristus e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.
*Sara Vieira Rosa, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Luciano Feijão e pesquisadora do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará
*Renato Pequeno, Professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.
*Rérisson Máximo, Professor do IFCE e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.
*Vinicius Saraiva Barretto, Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAUD – UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará e assessor técnico do Quintau Coletivo e Taramela ATAC.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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Edição: Lívio Pereira