Fato é que, no fim das contas, o município perdeu mais áreas verdes protegidas do que ganhou.
Em alguns espaços de debate a Prefeitura de Fortaleza tem afirmado que houve aumento de áreas verdes na cidade nos últimos anos. É certo que foram delimitadas novas áreas verdes, algumas delas com categoria de proteção ambiental e isso deve ser reconhecido. Contudo, paralelamente, o município tem suprimido outras áreas protegidas, fragilizando a preservação ambiental e a perspectiva de desenvolvimento ecologicamente equilibrado. Fato é que, no fim das contas, o município perdeu mais áreas verdes protegidas do que ganhou.
O reconhecimento da necessidade de proteção de novas áreas verdes urbanas não significa a possibilidade de supressão de outras. É como se o município estivesse dormindo com um lençol curto: puxa de um lado e descobre outro. Assim, alguma parte importante sempre fica desprotegida. Ao retirar a proteção ambiental de uma determinada área, o município fere o princípio de não regressão ambiental incorporado à Constituição Federal Brasileira e presente em diversos países.
Mas o que são as áreas verdes e as áreas de proteção ambiental?
Ao falar de áreas verdes urbanas, estamos nos referindo a locais com predomínio de vegetação que podem desempenhar funções ecológicas, paisagísticas e recreativas, conforme a resolução 369 do Conselho Nacional do Meio Ambiente de 2006. Estas representam uma infinidade de áreas que vão desde praças e parques urbanos às grandes áreas protegidas como Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Unidades de Conservação, como Áreas de Proteção Ambiental (APAs).
Tais áreas protegidas podem ou não ser cobertas por vegetação, apresentando funções como a de preservar os recursos hídricos, a biodiversidade, a troca de materiais genéticos da fauna e flora, a estabilidade geológica, a qualidade do ar e do clima, o que também garante espaços de fruição e lazer, assim como a própria existência e bem-estar da população humana. Sua definição e tipo de proteção são estabelecidos por marcos legais, como leis e decretos, a exemplo das APPs e APAs.
Diante do contexto atual, merece real destaque a importância das áreas de proteção ambiental frente aos efeitos das mudanças climáticas. Essas áreas podem funcionar como bolsões de contenção de água em resposta às grandes cheias, desde que respeitadas as margens de preservação dos corpos hídricos e suas planícies de inundação. Também possibilitam menor velocidade de escoamento das águas e maior permeabilidade do solo, contribuindo simultaneamente na mitigação de alagamentos e no aumento do volume de reservas aquíferas para enfrentamento de períodos de estiagem.
Qual o cenário atual?
A proteção ambiental pode ter diferentes categorias, que vão desde o controle visando o uso sustentável da área, segundo atividades compatíveis, até uma proteção integral, permitindo-se apenas usos indiretos, devendo a área ser preservada o mais próximo possível do seu estado “original”. O Plano Diretor Participativo de Fortaleza, aprovado em 2009, e principal lei que organiza o uso e ocupação do solo do município, estabeleceu as Zonas de Preservação Ambiental (ZPA) como de proteção integral e as Zonas de Interesse Ambiental (ZIA) e a Zonas de Recuperação Ambiental (ZRA) como de uso sustentável.
Entretanto, apesar dos avanços contidos no Plano Diretor Participativo, algumas áreas definidas pelo Código Florestal (Legislação Federal) como APPs, não foram integralmente incorporadas às ZPAs, como é o caso de trechos das dunas da Praia do Futuro demarcados como ZIA; ou de outros locais com vegetação de mangue e restinga. Para completar, as ZIAs e ZRAs sofreram alterações na Câmara Municipal durante a aprovação do Plano, notadamente em seus parâmetros de ocupação - aqueles que especificam o quanto e como se pode construir - deixando-os semelhantes às zonas de ocupação consolidada, reduzindo sua capacidade de proteção e recuperação ambiental.
De lá para cá o cenário não mudou: as alterações nos limites e nos parâmetros do zoneamento do Plano Diretor foram constantes, principalmente a partir de 2015. Mesmo com a criação da ZPA de Dunas, a partir da incorporação de alguns trechos das dunas do Cocó, em 2018, e da ampliação de parte da ZPA devido à construção da barragem do Rio Cocó, o saldo total ainda é negativo. A ZPA de Dunas criada corresponde a terrenos de APPs, ou seja, já se configuravam como áreas verdes. São áreas de dunas cobertas por vegetação que o município persiste em deixar, em grande parte, sem o devido reconhecimento legal. Quanto ao caso da barragem, a nova área protegida corresponde quase totalmente à ampliação do espelho d’água do próprio rio, ação que só foi necessária porque a cidade não respeitou as planícies de inundação dos rios e lagoas. Assim, tivemos um aumento proporcional de áreas ambientalmente protegidas, mas não necessariamente de áreas verdes.
Já as ZPAs suprimidas - que, segundo pesquisadores do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará, somam 836 hectares - equivalem em muitos casos a áreas vegetadas no entorno dos corpos hídricos, integrando as planícies fluviais de extrema importância para a contenção de cheias. Algumas delas foram transformadas em vias ou mesmo incorporadas ao zoneamento de ocupação consolidada, por vezes ficando mais estreitas ou até fragmentadas. Em tais condições, é mais difícil que as ZPAs se mantenham preservadas, realizando trocas biológicas e, principalmente, se recuperando em caso de degradação, o que representa uma diminuição das áreas protegidas e de potenciais áreas verdes.
Da mesma forma, importantes áreas de ZRA também foram suprimidas. Em vez de ter sido promovida a recuperação ambiental destas áreas, parte delas foi incorporada ao zoneamento de ocupação consolidada, contrariando o objetivo previsto no Plano Diretor. Dentre alguns exemplos, citamos: a ZRA onde está localizado o Iguatemi, onde posteriormente foi construída a Leroy Merlin e a ZRA do Sítio Colosso, que juntas alcançam 144 hectares, sendo ambas no setor sudeste da capital cearense, alvo de grande interesse do setor imobiliário.
Ao analisarmos todo o zoneamento ambiental, considerando as ZPAs em conjunto com as ZIAs e ZRAs, apesar de ter delimitado em torno de 578 hectares de novas áreas protegidas, o município perdeu aproximadamente 723 hectares, dando um saldo negativo de 145 hectares, cerca de 175 campos de futebol. Ou seja, o lençol está ainda mais curto e deixando mais áreas desprotegidas.
Quais as perspectivas para o futuro? o que fazer?
Projeções de cenários futuros apontam para o avanço da flexibilização da proteção de áreas ambientais no cenário nacional, haja vista o que vêm ocorrendo no Código Florestal, e também ao nível local, considerando as constantes leis que tramitam na Câmara Municipal de Fortaleza para alteração e supressão de áreas ambientais do zoneamento.
Uma oportunidade de resguardar essas áreas e recuperar a proteção legal daquelas que foram suprimidas pode ser a revisão do Plano Diretor em andamento. A proposta apresentada até agora tem ganhos e perdas. Importantes áreas com vegetação de planícies fluviais foram incorporadas às áreas com proteção integral, correspondentes às ZPAs, na nova versão chamadas de ZPR (Zonas de Preservação). Todavia, ainda assim, houve supressão de outras áreas importantes, que não podem ser desconsideradas, como o caso do entorno do Riacho Maceió, no bairro do Mucuripe.
Também foram suprimidas faixas de preservação de rios canalizados e áreas que foram ocupadas. Vale destacar que nesta revisão está sendo desperdiçada a chance de incorporar as nascentes dos riachos situadas dentro do município como áreas protegidas. Sem mencionar as áreas de proteção presentes nas ZIA e ZRA, cujos parâmetros de ocupação mostram-se ainda mais permissivos na versão em debate, negligenciando importantes funções ambientais possíveis para essas áreas.
Diante desta conjuntura, recomenda-se fortemente que os gestores e parlamentares estejam atentos a essas questões e que não aprovem leis que excluam, reduzam ou flexibilizem a proteção ambiental. É urgente o combate às constantes alterações em curso na Câmara Municipal que descaracterizam sobremaneira os princípios e diretrizes ambientais do Plano Diretor. É necessário também um maior controle social e maior fiscalização dos órgãos competentes.
Importante também debatermos a questão da natureza enquanto um sujeito de direitos, numa perspectiva não somente de garantia do nosso direito à natureza, mas dos direitos da Natureza. Talvez uma mudança de perspectiva - entendendo o ser humano como natureza, e que as demais espécies também têm direitos, inclusive o de seguir existindo - aponte para uma melhor saída, já que a perspectiva atual de olhar a natureza enquanto recurso ou ativo financeiro tem sido incapaz de garantir que a nossa espécie não destrua o meio que nos mantém vivos.
*Sara Vieira Rosa, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Luciano Feijão e pesquisadora do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará
**Marcelo Mota Capasso, Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unichristus e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.
***Renato Pequeno, Professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.
****Rérisson Máximo, Professor do IFCE e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.
*****Vinicius Saraiva Barretto, Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAUD – UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará e assessor técnico do Quintau Coletivo e Taramela ATAC.
******Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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Edição: Francisco Barbosa