Ceará

Coluna

As mudanças climáticas e as áreas verdes urbanas em Fortaleza

Rio Cocó como uma das maiores áreas verdes urbanas. - Foto: Rérisson Máximo
As áreas verdes urbanas exercem função fundamental na manutenção do equilíbrio ambiental nas cidades

O ano de 2024 ficará marcado na história por uma das maiores tragédias associadas a eventos climáticos extremos no país. Dezenas de pessoas morreram - e outras milhares ficaram desalojadas e desabrigadas - em decorrência dos efeitos das intensas chuvas que afetaram centenas de municípios sul-rio-grandenses. Foi mais uma das catástrofes socioambientais no Brasil nos últimos anos, tendo cientistas apontado que o aumento da sua frequência e intensidade está diretamente relacionado às mudanças climáticas. Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Municípios, apenas 1/5 dos municípios brasileiros estariam preparados para o aumento de eventos climáticos extremos.

Seus impactos são percebidos por todo o território, mas são mais devastadores nas áreas urbanas. Isso ocorre, dentre outras razões, pelo padrão predatório de ocupação do solo que caracteriza as cidades brasileiras, em especial aquelas mais populosas, como Fortaleza. No Brasil, historicamente as cidades cresceram ocupando morros, dunas, rios e lagoas, destruindo manguezais, devastando florestas e nascentes, aterrando praias, concretando e asfaltando o solo. No nosso país, via-de-regra, as cidades negaram a natureza, tendo sido a mercantilização do solo um dos componentes fundamentais da degradação do meio ambiente no espaço urbano.

Ainda assim, muitas cidades apresentam trechos propícios à conservação ambiental. São as áreas verdes urbanas, definidas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente como os espaços de domínio público que desempenham função ecológica, paisagística ou recreativa, propiciando a melhoria da qualidade estética, funcional e ambiental da cidade, sendo livres de impermeabilização.

Estas áreas, em geral, apresentam cobertura vegetal de diferentes tipos - arbórea, arbustiva ou rasteira - e contribuem de modo significativo para a qualidade de vida e o equilíbrio ambiental nas cidades.  Em Fortaleza, as áreas verdes urbanas estão presentes em uma enorme variedade de situações. Estão localizadas nas Áreas de Preservação Permanente (APPs), nas praças, nos canteiros centrais, em resquícios florestais, em unidades de conservação urbanas, em jardins institucionais, em terrenos públicos não edificados e nos parques, estes sendo as áreas verdes mais significativas da cidade. Cabe registrar que alguns exemplos de áreas verdes urbanas, como praças, geralmente possuem reduzida cobertura vegetal e são parcialmente impermeabilizadas.

O Programa Cidades Sustentáveis apontou que em 2015 Fortaleza possuía uma média de quase 6,4 metros quadrados de área verde por habitante, inferior ao mínimo estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é 12 metros quadrados. Estudo realizado por pesquisadores da UFC apontou que a cobertura vegetal na cidade - presente em áreas verdes urbanas e em outros trechos com vegetação, como terrenos privados - foi reduzida de 49,1%, em 1988, para 28,1%, em 2017. Ressalte-se que há uma distribuição desigual das áreas verdes, com concentrações e densidades maiores em trechos ocupados por camadas de maior renda, como a maior parte do entorno do Parque do Cocó em oposição às áreas ao longo do Rio Maranguapinho. Ademais, embora consideradas espaços de valoração ambiental, essas áreas sofrem, em geral, os efeitos de um crescimento urbano desordenado, que as degrada, polui e ocupa de maneira inadequada.

Do ponto de vista geológico, Fortaleza se desenvolveu sobre sistemas ambientais representados pelos tabuleiros pré-litorâneos e pelas planícies litorâneas e fluviomarinhas. O seu território está inserido em quatro bacias hidrográficas que conformam as planícies flúvio-lacustres, um dos sistemas ambientais presentes na cidade.

Além da bacia denominada de vertente marítima - que corresponde a uma faixa ao longo do litoral - e uma pequena parcela da bacia do rio Pacoti, a capital cearense está inserida nas bacias do rio Maranguapinho e na do rio Cocó, que juntas ocupam quase a totalidade do território municipal, inclusive se estendendo a outros municípios.

Fortaleza também apresenta as planícies lacustres como elementos constituintes de sua paisagem. São áreas que circundam as lagoas perenes e semiperenes, sendo submetidas a inundações periódicas, mas precariamente incorporadas à rede de drenagem. Estudo realizado por pesquisadores da UFC indicou a existência de 103 lagoas em Fortaleza. Dados oficiais da Prefeitura de Fortaleza indicavam que, em 2022, Fortaleza tinha 27 parques urbanos, sendo 14 deles associados a lagoas, tipo de corpo hídrico bastante presente na paisagem da cidade. Grande parte das áreas verdes urbanas de Fortaleza estão associadas àquelas duas bacias hidrográficas e a estas planícies lacustres. A maior parte destas áreas encontram-se, além de poluídas e degradadas, ocupadas e fragmentadas.

Outra característica importante de Fortaleza é a sua elevada densidade demográfica. O Censo Demográfico de 2022 aponta a capital cearense como a quarta cidade mais populosa do país e a capital com maior densidade demográfica, superando inclusive São Paulo. Ou seja, Fortaleza tem um grande contingente populacional - são mais de 2,4 milhões de pessoas - que ocupa um território reduzido, quando comparado ao de outras grandes cidades. Um dos desafios resultantes é justamente a pressão de ocupação de áreas verdes urbanas, ainda que a cidade apresente considerável estoque de terrenos vazios passíveis de serem construídos. É essa conjuntura que delineia os desafios de preservação de áreas verdes urbanas na capital cearense. 

Nos últimos anos, observa-se em Fortaleza significativas alterações na legislação urbanística, flexibilizando-se regras de uso e ocupação do solo nas áreas verdes urbanas. Têm sido propostas e realizadas reduções naquelas áreas em diferentes escalas, seja em quarteirões consolidados ou até mesmo sobre trechos maiores, em áreas de proteção ambiental. Exemplos recentes foram as mudanças propostas para trechos dos bairros Presidente Kennedy e São Gerardo, na sub-bacia do Riacho Alagadiço, que seriam excluídos da Macrozona de Proteção Ambiental, delimitada em 2009. Dados do diagnóstico apresentado pelo Plano Diretor em revisão apontam que Fortaleza perdeu quase 109 hectares de áreas localizadas nessa Macrozona, modificada por leis complementares. Entretanto, a redução de áreas verdes resultante dessa flexibilização contribui contraditoriamente para os efeitos perversos esperados das mudanças climáticas na escala urbana. 

Cabe destacar ainda que o Plano Diretor de Fortaleza, em processo de revisão, propõe uma rígida divisão entre a Macrozona do ambiente construído e a Macrozona do ambiente natural, como se fosse possível criar uma rígida oposição entre natureza e sociedade. Ademais, a proposta preliminar do Plano apresenta significativos retrocessos na legislação urbana e ambiental, com supressão de áreas verdes e aumento do potencial construtivo em algumas dessas áreas. Um exemplo é o das Zonas de Uso Sustentável, que incluem importantes áreas de interesse ambiental da cidade - como o entorno do Riacho Maceió, da lagoa da Parangaba, da Lagoa da Messejana e trechos do Parque Rachel de Queiroz - e que teriam o potencial construtivo acrescido em quase cinco vezes, se comparado com os indicadores do atual Plano Diretor.

A nova proposta do Plano Diretor também mantém no zoneamento ambiental áreas ocupadas por edificações como a Torre Empresarial Iguatemi e outro trecho próximo a esta edificação, onde estão localizados um centro comercial e quatro edifícios de luxo. Também consta naquela proposta a supressão de áreas das ainda vigentes Zonas de Recuperação Ambiental que permanecem não edificadas e a não inclusão de áreas verdes urbanas justapostas a trechos de áreas de preservação permanente que não seriam incorporadas nem mesmo às Zonas de Uso Sustentável, trechos com ocupação menos permissiva e mais sustentável. 

As áreas verdes urbanas exercem função fundamental na manutenção do equilíbrio ambiental nas cidades, daí a importância delas serem consideradas no debate sobre as mudanças climáticas na produção dos espaços urbanos. Nesse sentido, o Plano Diretor de Fortaleza em revisão - que inclusive traz a palavra sustentável no seu nome - torna-se instrumento fundamental e necessário para a preservação e para a ampliação dessas áreas que já existem, mas precisam ser protegidas por meio de legislação e outros instrumentos normativos. Na formulação do novo Plano Diretor, o Executivo Municipal - além de impedir que haja supressão total ou parcial dessas áreas - precisa identificar, demarcar e delimitar lagoas e nascentes de rios e riachos como zonas de preservação e recuperação ambiental, como tem sido sugerido por sujeitos da sociedade civil que compõem o chamado campo popular do Plano Diretor. Deve também realizar diagnósticos sobre a situação do lençol freático e a capacidade de infiltração do solo, propondo um zoneamento capaz de receber adequadamente futuras construções. Além disso, é fundamental que sejam criadas ou fortalecidas instâncias de controle e participação social nas questões ambientais e urbanas, como o Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam) e o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano (CMDU). 

Dessa forma, mais do que as cidades estarem preparadas para os efeitos das mudanças climáticas, é importante apontar que são elas que, pelo modelo predatório de ocupação do solo, preparam os eventos climáticos extremos! O nosso padrão de urbanização contribui diretamente para a ocorrência desses trágicos fenômenos e as cidades brasileiras precisam responder aos efeitos das mudanças climáticas. Mas, para além de políticas públicas que os mitiguem, é necessário repensar mudanças no padrão de ocupação dos espaços urbanos que privilegia o valor de troca e mercantiliza a dinâmica de produção da cidade.

*Rérisson Máximo, Professor do IFCE e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

**Renato Pequeno, Professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

***Vinicius Saraiva Barretto, Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAUD – UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará e assessor técnico do Quintau Coletivo e Taramela ATAC.

****Marcelo Mota Capasso, Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unichristus e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

*****Sara Vieira Rosa, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Luciano Feijão e pesquisadora do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

******Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Francisco Barbosa