Ceará

Coluna

Intervenções nas áreas de risco de Fortaleza frente às mudanças climáticas

Área de risco em Fortaleza às margens do Maranguapinho - Acervo do Lehab - UFC
A precariedade das favelas se revela sob várias dimensões de vulnerabilidade

Diante da crise climática que o mundo vem enfrentando há décadas e que tem se intensificado nos últimos anos, em especial nos espaços urbanos, a questão das áreas de risco tem ganhado destaque nos debates sobre planejamento e gestão das cidades brasileiras. Mas o que é e quem define o que é risco? Como as áreas de risco se apresentam em Fortaleza? A questão do risco possui diversas abordagens e aplicações na sociedade. O termo, por exemplo, é utilizado na economia, associado ao perigo de perdas econômicas; na ciência da saúde, na forma de potenciais doenças e epidemias; ou na geografia, atrelado às condicionantes ambientais. Em todos esses campos sociais, o risco é percebido como perigo.

No âmbito do planejamento urbano constata-se uma abordagem multidisciplinar, que combina riscos geográfico, social, econômico, ambiental e sanitário, por vezes associados a condições de vulnerabilidade socioambiental. Em geral, áreas de risco são territórios localizados em áreas de proteção e preservação ambiental, principalmente nas cidades. Em Fortaleza é possível classificar as áreas de risco em diferentes tipos, segundo sua situação: à beira de corpos hídricos, como rios, lagos e lagoas, sujeitas a alagamentos, inundações e solapamento das margens; na faixa de praia, sujeitas ao avanço das marés e deslocamento de bancos de areia; nas encostas de dunas, sujeitas a deslizamentos; ou próximas a lixões, aterros sanitários e estações de tratamento de esgotos.

Importante observar que as áreas de risco correspondem a diversos assentamentos precários da cidade, conforme apontam os diagnósticos e planos habitacionais elaborados nas últimas décadas pelo poder público. O problema encontra sua origem no processo de formação desigual de Fortaleza, destacando-se os acampamentos de refugiados das secas consolidados nas franjas urbanas de outrora e a reprodução socioespacial da pobreza articulando o aparecimento de uma imensa periferia. Diante da incapacidade de acesso à terra por meio de compra, assim como na ausência ou insuficiência de uma política habitacional, restou como única alternativa a ocupação informal, sob a parcimônia do poder público, de espaços da cidade sem valor imediato de mercado, notadamente: as áreas ambientalmente vulneráveis, justamente aquelas consideradas de risco. De acordo com o Plano Local de Habitação de Interesse Social de 2012, 34% dos assentamentos precários de Fortaleza estavam localizados em algum tipo de zona ambiental estabelecida pelo plano diretor em vigor e quase 29% daqueles assentamentos se localizavam em áreas de risco.

Muitos desses assentamentos precários surgiram e se consolidaram devido ao desenvolvimento socioespacial desigual de Fortaleza e coincidem com as áreas de risco mapeadas na cidade. A precariedade das favelas se revela sob várias dimensões de vulnerabilidade, já que as famílias - pela dificuldade ou impossibilidade de acesso a políticas públicas e ao mercado formal de imóveis - autoconstruíram suas moradias, frequentemente em situação de risco. Esses locais sofrem historicamente com enchentes e alagamentos, especialmente quando ocorrem as chuvas vintenárias que assolam o Ceará, como aquelas que ocorreram esse ano, gerando alagamentos, inundações e enchentes. Somam-se ao desabamento de casas e a inundação de favelas, ruas e avenidas, o impacto na saúde e na qualidade de vida das famílias de baixa renda sem acesso a políticas públicas que mitiguem riscos e viabilizem o saneamento ambiental.

Como o Poder Público tem intervindo nas áreas de risco?

A pauta ambiental começou a ganhar destaque em escala global por volta da década de 1970, influenciando algumas políticas nacionais e locais. Em Fortaleza, o tema e a reivindicação para que as famílias de baixa renda residentes em áreas de risco fossem alvo prioritário de políticas públicas de saneamento ambiental e habitação ganhou força com a atuação do Fórum das Áreas de Risco durante a década de 1990. Formado por diversas ONGs atuantes nas comunidades de Fortaleza, aquele fórum foi responsável por catalogar e mapear os casos veiculados na imprensa, indicando que em 1997 existiam 79 áreas de risco na cidade, onde viviam quase dez mil famílias. 

Desde então as políticas habitacionais locais assumiram quase exclusivamente as áreas de risco como recorte principal para intervenção. Prevalece como estratégia nessas intervenções a remoção das famílias e o reassentamento para outros locais, via de regra, distantes e que, em alguns casos, situados em outros municípios. Todavia, faltam evidências de estudos técnicos sobre o problema em sua totalidade. Basta lembrar que apenas em 2012 foi elaborado um novo mapeamento como parte do Plano Local de Habitação de Interesse Social, quando foram identificadas 89 áreas de risco na cidade associadas a favelas e comunidades urbanas.

Cada vez mais verifica-se em Fortaleza a definição seletiva das áreas de risco para as quais são apontadas diferentes abordagens nas intervenções, a depender da sua localização quanto ao preço do solo urbano. É visível a dicotomia quanto aos grupos sociais que ocupam áreas de risco. Por um lado, os assentamentos precários compostos por famílias de baixa renda foram progressivamente removidos ao longo das últimas décadas pelo poder público, como aqueles no Morro do Teixeira, nas margens do Rio Maranguapinho, dentre outros diversos casos. Por outro, áreas de interesse turístico e imobiliário próximas ou inseridas em zonas ambientais vêm sendo ocupadas por empreendimentos imobiliários ou por projetos do próprio Estado. Exemplos são o Marina Park Hotel, localizado em faixa de praia, os moinhos do Mucuripe, os diversos prédios de alto padrão construídos na faixa de praia do Mucuripe, bem ao lado do Cais do Porto, assim como novos empreendimentos lançados à beira de lagoas em áreas de preservação, como a tentativa de aprovar um loteamento residencial sobre um apicum na Sabiaguaba.

Dessa forma, a definição de área de risco politicamente institucionalizada está fortemente impregnada tanto pelos interesses do setor imobiliário mercado sobre a sua localização, quanto pela característica socioeconômica da população que a ocupa. A contradição se revela no tratamento diferenciado dado às avenidas Heráclito Graça e Aguanambi, assentadas sobre riachos em bairros altamente valorizados, cujo nível dos alagamentos denunciavam a existência de risco geográfico. Entretanto, sem nunca terem sido identificadas pela defesa civil por esse critério, estas vias receberam obras de drenagem que reduzirão o risco sem a remoção da população que habita seu entorno. Enquanto isso, diversos assentamentos precários de Fortaleza ainda lutam pelo direito ao saneamento ambiental que todo cidadão deveria ter acesso. 

O esgotamento sanitário, assim como a drenagem urbana, deveriam ser serviços públicos universalizados para Fortaleza, atendendo também aos assentamentos precários de forma a mitigar riscos e promover melhorias na qualidade de vida da população. Atualmente, tem sido implementado como política pública na cidade o Programa de Infraestrutura em Educação e Saneamento de Fortaleza (Proinfra), priorizando obras pontuais de mobilidade, pavimentação, drenagem, e, em alguns poucos casos, de esgotamento sanitário. Ao invés de promover a urbanização integral de assentamentos precários e entorno, tem sido realizada uma urbanização parcial que, além de apresentar obras desarticuladas e incompletas, findam por não resolver os problemas de precariedade urbanística. O quadro ainda se agrava nas áreas em que redes de esgotamento sanitário são implementadas, mas o Estado e as concessionárias transferem para a população de baixa renda a responsabilidade - e o custo - de fazer a ligação com a rede pública.

Dessa forma, as intervenções estatais em favelas e comunidades urbanas devem ser formuladas primeiramente por meio de políticas públicas baseadas em estudos e planos voltados para caracterização e efetivo dimensionamento das áreas de risco e das necessidades de infraestrutura urbana. Para tanto, a política urbana municipal deve considerar o saneamento ambiental não só como objetivo de um programa de obras, mas como componente da política urbana, em função de seus efeitos sociais, notadamente quanto à saúde pública. 

As intervenções em áreas de risco realizadas pelo poder público devem considerar o contexto territorial nas quais se inserem, envolvendo leitura e abordagem social do território. Além disso, ressalta-se a necessidade de investimento em obras para mitigar o risco em assentamentos precários. Junto a isso, é importante que os governos olhem para o risco ambiental de maneira uniforme e menos estigmatizada, adotando a mesma atenção e abordagem independente da faixa de renda das famílias e da situação fundiária. É preciso que as obras de infraestrutura urbana e saneamento ambiental em favelas e comunidades urbanas removam os riscos, principalmente o ambiental, mas não as famílias residentes, da mesma forma que tem sido feito em bairros de classe média e classe alta. 

*Vinicius Saraiva Barretto, Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAUD – UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará e assessor técnico do Quintau Coletivo e Taramela ATAC.

*Renato Pequeno, Professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

*Rérisson Máximo, Professor do IFCE e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

*Marcelo Mota Capasso, Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unichristus e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

*Sara Vieira Rosa, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Luciano Feijão e pesquisadora do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Camila Garcia