Ceará

Coluna

Desafios da macrodrenagem e do saneamento básico na Região Metropolitana de Fortaleza

Urbanização das margens do Maranguapinho. - Laboratório de Estudos da Habitação da UFC.
Segundo dados da OMS, R$ 1 investido em saneamento corresponde a R$ 4 investidos em saúde pública.

Fortaleza é a cidade-pólo de uma região metropolitana composta por 19 municípios, onde moram quase quatro milhões de pessoas. Grande parte dessa população está concentrada na capital e nos municípios a ela conurbados, constituindo espaço extremamente denso, carente de espaços livres e onde o parcelamento do solo pouco considera os elementos da natureza. Essa dinâmica de ocupação do solo urbano tem impactado seus principais rios urbanos, que apresentam alguns aspectos em comum, dentre os quais a localização de suas nascentes fora da capital cearense. O Maranguapinho, afluente do Rio Ceará, nasce na Serra de Maranguape; e o rio Cocó nasce na Serra de Pacatuba. Ao longo dos seus percursos, têm sido observados impactos causados por grandes obras de engenharia realizadas décadas atrás. No Maranguapinho, ocorre o recebimento dos efluentes das lagoas de estabilização construídas para atender à demanda sanitária dos grandes conjuntos habitacionais construídos nos anos 1970 e 1980 pelo Banco Nacional de Habitação em Maracanaú. No rio Cocó foi construído o açude Gavião, em Pacatuba e Itaitinga, voltado para garantir segurança hídrica no abastecimento de água para Fortaleza. 

Antes mesmo de chegarem a Fortaleza, estes rios atravessam bairros populares e conjuntos habitacionais nos municípios vizinhos. Contudo, a situação se agrava no território fortalezense, como a ocorrência de inúmeras áreas de risco. Esse problema está associado, principalmente, com a redução da produção habitacional de interesse social ainda nos anos 1990 e o crescente empobrecimento urbano. Como resultado, dezenas de assentamentos precários foram construídos nas margens destes rios - e de outros elementos hídricos que compõem as suas bacias, como riachos e lagoas -, assim como em faixas de praia e dunas. Desde então, milhares de famílias passaram a conviver com situações de extrema vulnerabilidade socioambiental.   

Alguns fatores podem ser apontados como causas para o agravamento da situação de extrema vulnerabilidade socioambiental observada nos territórios precarizados localizados ao longo das margens desses elementos hídricos. Inicialmente, destaque para a forma predatória e intensiva como ocorreu o processo de urbanização, se apropriando dos elementos da natureza, especialmente seus recursos hídricos. De forma avassaladora, a implantação de dezenas de loteamentos levou à supressão da vegetação nas nascentes e à devastação de matas ciliares, derivando em modificações no curso natural dos rios, assim como no aterramento de lagoas, córregos e riachos. Chama a atenção que os loteamentos urbanos, sejam eles populares ou voltados para classes de maior renda, de forma indiscriminada desconsideram as linhas da natureza, ocupando nascentes, interrompendo linhas de drenagem natural e estrangulando pequenos cursos d’água. Em várias lagoas de Fortaleza o volume de água foi reduzido em função de interferência antrópica nas suas bacias, resultando na ocupação precária de suas margens.

Na ausência de controle urbano, agravou-se também a situação das áreas de risco, resultando na necessidade de investimentos em grandes obras públicas de macrodrenagem, deixando em segundo plano a implantação de programa de urbanização de favelas, enquanto uma das ações possíveis para uma política habitacional.

Análises realizadas em 2018 pelo Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará sobre os contratos do Programa de Aceleração do Crescimento voltados para a urbanização de assentamentos precários na Região Metropolitana de Fortaleza apontaram que quase 80% do total de investimentos foi direcionado para obras vinculadas às áreas de risco localizadas nas margens dos rios Maranguapinho e Cocó. Estão inclusos nestes investimentos a construção de barragens hídricas em trechos desses rios situadas antes de áreas mais urbanizadas, assim como o seu desassoreamento. Além disso, os contratos preveem a construção de mais de 15 mil unidades habitacionais, revelando a opção pela remoção e reassentamento como principal estratégia de intervenção nos territórios precarizados localizados às margens dos rios. Dentre as dezenas de favelas em situação de risco beneficiadas com as obras do Programa de Aceleração do Crescimento, algumas delas não foram urbanizadas em sua totalidade, restringindo-se aos trechos em situação de risco. Essa condição deixa como marca a incompletude do acesso às redes de infraestrutura, o que no caso de favelas pode ser considerado como bastante comprometedor dos resultados almejados pelas ações de urbanização.

No âmbito do saneamento ambiental, é importante destacar que a opção de governos e concessionárias de serviços públicos pela implantação de grandes estações de tratamento de esgotos tem resultado na demora da universalização - ou, ao menos, da ampliação - do acesso ao saneamento ambiental. Em análises feitas pelo Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará sobre as disparidades no acesso às redes de infraestrutura urbana apontam as condições precárias de saneamento como o seu principal indicador, já que tem sido observada a ampliação do acesso ou a universalização do abastecimento de água, da coleta de resíduos sólidos e das redes de energia elétrica.

Neste sentido é importante lembrar que investimentos em saneamento ambiental têm impactos diretos na melhoria das condições de saúde da população mediante a redução de doenças de veiculação hídrica. Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que cada real investido em esgotamento sanitário corresponde a quatro reais investidos na melhoria da saúde pública.

Na contramão destas constatações, observa-se que as obras de infraestrutura urbana em bairros populares, em geral, são restritas à pavimentação e à drenagem urbana, negligenciando o esgotamento sanitário. Todavia, o descaso com a urbanização integral tende a comprometer a saúde da população, favorecendo o surgimento de epidemias associadas a doenças de veiculação hídrica. Mesmo em conjuntos habitacionais de interesse social, as infraestruturas de saneamento básico e sistemas de drenagem urbana não têm sido devidamente implantados, situação que se agrava quando esses empreendimentos habitacionais são implantados nas periferias, ampliando-se as condições de vulnerabilidade socioambiental nestes territórios. 

No caso das favelas, em grande parte desprovidas de saneamento básico, as condições precárias de moradia resultam em maior insalubridade das condições de moradia para seus moradores. Isso é evidente quando observadas as precárias condições de ventilação, iluminação natural e de revestimento das moradias; e a intensidade da ocupação do solo, que agravam os problemas associados à microdrenagem.

Frente a este quadro de degradação ambiental associado ao saneamento precário e aos problemas de drenagem nas cidades, o que poderia ser feito?

A partir do conhecimento sobre as condições de vida da população nos bairros periféricos, algumas recomendações podem ser elencadas, compondo um conjunto de pautas e ideias que deveriam estar presentes em plataformas eleitorais e mesmo programas de governos municipais. Dentre elas, podemos listar:

  • A adoção da bacia hidrográfica como unidade territorial de planejamento;

  • A análise dos rios urbanos como elementos estruturantes e a valorização de riachos e lagoas como elementos significativos da paisagem;

  • A renaturalização de rios, riachos e lagoas degradados mediante a recomposição de matas, a despoluição das águas, a retirada de lixo e o impedimento de lançamento de esgotos através da implantação de redes de drenagem;

  • A recuperação ambiental das áreas degradadas e a sua devolução à população como parte de sistema de espaços livres;

  • A abordagem integrada da drenagem e do saneamento ambiental em suas diferentes escalas;

  • A adoção de unidades descentralizadas de tratamento de esgotos como alternativas de curto prazo para atender às comunidades urbanas;

  • A urbanização integrada de assentamentos precários, com o reassentamento da população nas proximidades, em caso de necessidade de remoção;

  • A inclusão de programas de reformas nas moradias com assessoria técnica como mecanismo para garantir melhor qualidade de vida à população de favelas e comunidades urbanas.

O saneamento ambiental nas cidades é uma questão importante que se agrava com a ocupação desordenada das margens de rios por assentamentos precarizados. A falta de infraestrutura adequada nesses locais resulta na poluição das águas, agravando os riscos à saúde pública e ao meio ambiente. Solucionar este problema requer uma abordagem integrada que inclua, dentre outros aspectos, políticas públicas urbanas, habitacionais e ambientais integradas, além de investimentos em saneamento básico e na urbanização de assentamentos precários localizados nas margens de elementos hídricos. Assim, é possível enfrentar os desafios da macrodrenagem e do saneamento básico na Região Metropolitana de Fortaleza.

*Renato Pequeno, Professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

*Rérisson Máximo, Professor do IFCE e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

*Vinicius Saraiva Barretto, Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAUD – UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará e assessor técnico do Quintau Coletivo e Taramela ATAC.

*Sara Vieira Rosa, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Luciano Feijão e pesquisadora do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

*Marcelo Mota Capasso, Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unichristus e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Camila Garcia