Ações como o Projeto de Lei 1904 de 2024, que criminaliza vítimas de estupro ao equiparar o aborto legal após a 22ª semana ao crime de homicídio, traz à tona debates sobre a garantia de direitos e sobre o avanço de pautas da extrema direita e do bolsonarismo. Mas como a população pode barrar essas pautas e garantir que os direitos já conquistados com muita luta se mantenham assegurados? Quais os riscos desse campo político para as eleições deste ano? Para responder essas e outras perguntas o Brasil de Fato conversou com Joana Borges, historiadora e psicanalista. Confira.
Estamos vendo a realização de algumas ações antidemocráticas e de retirada de direitos, como o PL1904 de 2024. Isso representa um avanço da extrema direita e do bolsonarismo nos espaços políticos?
Bom, eu não diria que é uma novidade. Já faz alguns anos, algumas décadas, pelo menos duas, e a direita, especialmente uma direita conservadora, percebeu a importância de atuar de maneira organizada nos espaços institucionais. Então, ao invés de apenas colocar sua agenda moral na família, na igreja, em outros locais mais públicos, eles se voltaram também para a esfera política institucional, especialmente a Câmara Federal dos Deputados e seguem algumas décadas impondo agendas próprias da sua bancada, mas também atrasando outras.
A questão do aborto no Brasil, como em outros países, ainda se encontra em um patamar muito atrasado, diferente de outros em que a gente já consegue visualizar como um caso de saúde pública e não apenas um crime, como no Brasil sempre vem sendo.
Por que as pautas das mulheres, da população LGBT, dos povos tradicionais, entre outros, incomodam tanto essa extrema direita?
Olha, existem algumas avaliações dentro do campo das ciências sociais, da ciência política, da própria psicanálise e de muitos analistas políticos, mas eu arriscaria dizer que existe um elemento, e vou me deter a ele, que essas pautas, tanto quanto os movimentos que as mobilizam como os movimentos feministas, movimentos LGBTQIA+, os movimentos antirracistas, os movimentos indígenas, todos esses movimentos que, de alguma forma questionam o status quo do que seria o modo como a sociedade se organiza, eles causam um certo horror às pessoas que são sujeitos historicamente acostumados a ocupar os espaços de poderes. Então, além disso, além do aspecto político da coisa, de não querer, obviamente, ceder o seu local para que sujeitos marginalizados ao longo da história o ocupem, eu diria que também é um fator de que mexer com isso mexeria também na própria identidade dessas pessoas.
Quando você admite que existem outras maneiras de ser no mundo, de viver no mundo, você também mexe com o que seria a regra, o que seria a base, digamos assim, o fundamento, que é o que essas pessoas conservadoras, de extrema direita normalmente pautam. O conservadorismo é isso, deixar conservado, conservar o movimento histórico o qual eles ocupam há alguns séculos, assim, então, essa ameaça as estruturas, essa possibilidade de vislumbrar uma outra ordem, com outros tipos de ser no mundo, mexe também com o modo que essas pessoas são no mundo.
Eu diria que existem esses dois elementos muito preponderantes. Primeiro, obviamente, uma incapacidade de permitir que outros também possam ocupar esses espaços de poder, quando isso diminuiria o poder deles, mas também um certo medo a essa ameaça de outras formas de ser que ameaçam o seu próprio ser no mundo.
E quais são os riscos dessas ações que vão contra a esses direitos já conquistados?
A ameaça sempre existiu. Existe o PL 1904 deste ano, que está sendo, na última semana, matéria de muita discussão, mas no último mês, nos últimos dois meses, pelo menos, a bancada conservadora da Câmara também colocou em torno de oito projetos que direcionam aos ocupantes de terra, aos trabalhadores que lutam pela reforma agrária, no sentido de criminalizar especialmente o Movimento Sem Terra, então existe uma série de ações que, além de causar horror pelo conteúdo, como o do PL 1904, mas outros também que vão totalmente de encontro à própria Constituição de 88, a nossa Constituição democrática. Então isso ilustra um pouco como a extrema direita atua não só aqui no Brasil, mas em todos os lugares no mundo onde ela está em voga, que é essa sanha antidemocrática.
A democracia também, por ser um espaço de todos, ou pelo menos supostamente ser, abre margem, obviamente, para esses outros sujeitos que nunca tiverem seus direitos amplamente garantidos, então, o trabalho deles também é, o máximo que puder, não só impedir que direitos avancem, mas também correr atrás dos direitos já garantidos, e nós temos uma certa dificuldade, politicamente no Brasil, porque já há algum tempo o STF acaba sendo o último reduto de proteção dessas aberrações de propostas legislativas e acaba assegurando, pela via jurídica, a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dessas propostas. No entanto, a gente não pode, sociedade brasileira, colocar apenas na mão do judiciário a capacidade de mobilizar, de conseguir efetivar esses direitos, a garantia desses direitos ou a promoção de novos direitos. Apenas o povo organizado será capaz de avançar nesse sentido.
Extrema direita e o bolsonarismo são a mesma coisa?
O bolsonarismo, eu diria, que é a expressão organizada, nesse momento histórico, dessa força da extrema direita no Brasil, como em outros locais do mundo acabam também por serem referenciadas ao redor de alguma figura pública, normalmente controversa, como o Bolsonaro, como o Trump. Então bolsonarismo foi o nome que a ciência política, que alguns articulistas também de jornais encontraram para poder destacar o aspecto de liderança de Jair Bolsonaro na capacidade de coesionar todas essas pautas, essas demandas conservadoras em torno de um projeto que o colocava à frente.
E no estado do Ceará, como é que está a realidade da presença dessa extrema direita?
Aqui no Ceará, nós temos algumas figuras políticas que, inclusive, estão na Câmara Federal. Há algumas semanas, por conta justamente do PL 1904 nós tivemos muitas aparições nas redes da Dayany, que a esposa do Capitão Wagner, uma das coautoras do PL, uma mulher. É uma figura que, obviamente, por conta desse processo tentou, digamos assim, dentro do debate conservador, de extrema direita, mas temos alguns outros políticos, como o André Fernandes, na Câmara Federal, na Assembleia Legislativa, o pai dele, Alcides Fernandes, algumas pessoas que se colocam nesse local, e muitos deles, podemos perceber, por aspectos religiosos, outros por aspectos mais antidemocráticos, mas todos eles por aspectos conservadores, então, embora o Ceará tenha uma tradição mais à esquerda, tanto a nível de governos estaduais, prefeitura na capital, montante de votos do governo da classe trabalhadora a nível de presidência, sempre demonstrou o Ceará como o estado mais avermelhado, digamos assim.
O próprio Capitão Wagner, que está agora como pré-candidato à prefeitura de Fortaleza, mesmo tendo sido apoiado pelo Bolsonaro, feito chapa com Bolsonaro nas últimas duas eleições, teve apoio e ter participado da mesma organização ele vem tentando agora ter um discurso cada vez menos agressivo, mais republicano. Nunca foi um candidato que se colocasse dentro dessas esferas, expressamente religiosa, expressamente antidemocrático, expressamente conservadora, é um candidato que tenta aliar uma postura minimamente conservadora com um discurso minimamente republicano, então, mesmo aqui no Ceará, as figuras que se aliam ao bolsonarismo, como o Capitão Wagner, podem ser afetadas pelo fenômeno democrático que o Ceará sempre encantou.
Este ano é ano de eleição. Quais são os riscos dessa presença da extrema direita para as eleições deste ano? Principalmente se tratando do Ceará.
Venho dizendo em todos os locais que venho sendo chamada para debater que o grande objetivo do bolsonarismo, da extrema direita este ano no Brasil é se organizar nos pequenos e médios municípios, uma coisa que eles não tinham em 2018 e que eles não conseguiram avançar o suficiente para 2022, para as eleições da reeleição do Bolsonaro. A direção política do bolsonarismo compreendeu que não adianta só ter a cereja do bolo, não adianta só ter a presidência do Brasil para garantir que o projeto político deles se concretize e não possa ser novamente abalado, veja, Lula ganhou as eleições apertadas? Ganhou, foi apertado, mas ele estava disputando com o atual presidente do Brasil, que tinha a máquina na mão. Lula também havia saído da prisão e sofreu, por pelo menos uma década antes, um bombardeio moral no jornal nacional quase que cotidianamente e ainda assim ele venceu as eleições.
Creio que essa eleição é uma eleição muito importante, é uma eleição em que eles vão começar esse processo, esse projeto de se concretizarem como uma força de base, digamos assim, e isso, com certeza pode definir alguns próximos anos no nosso Brasil.
E na hora de escolher os candidatos, o que os eleitores precisam ficar atentos?
Bom, antes eu queria colocar de modo geral algumas coisas relacionadas a três pontos básicos. A primeira delas é como as fake news ainda impactam no processo eleitoral aqui no Brasil, em qualquer esfera eleitoral que aconteça. Então, a primeira coisa é sempre tentar estar atento às fontes dessas informações, não acreditar em tudo o que chega no seu WhatsApp, especialmente estar atento, tentar checar os fatos. Tem muita observação também, muitos processos de assédio moral que acontecem em muitos estabelecimentos comerciais, em trabalhos. A gente observou, nas últimas eleições, denúncias de grandes empresas, inclusive, que mobilizava o seu contingente de trabalhadores em prol de candidatos x, ou y. Então esse também é um processo que já denota certo nível de violência, porque destitui a pessoa do seu direito de escolher seu candidato, de votar no seu candidato, com o risco de perder o seu emprego, e também a pressão de caráter mais religioso.
O mais importante diria que é estar atento para as propostas. Eu acho que um candidato que propõe melhorias para a população é um bom candidato. Eu acho, que pela própria missão de ser do parlamento, como seria a Câmara de Vereadores dos Municípios, deve estar voltada para uma pauta propositiva de melhoria da vida da população de suas cidades, acho que esse seria o caráter mais geral.
E como a população e os movimentos populares podem combater esse avanço da extrema direita e de suas pautas para além das eleições?
Essa é uma ótima pergunta. Eu venho comentando isso com frequência para as pessoas mais próximas, nos debates. A extrema direita e o bolsonarismo crescem, e isso é facilmente observado se a gente pegar essas figuras que despontam como grandes fenómenos políticos, como o André Fernandes aqui, e como o Nicolas lá de Minas Gerais são pessoas que crescem em uma polarização contante com a esquerda, com o campo democrático no Brasil, com as pautas progressistas. Então eles cresceram e conseguiram impor a sua agenda, impor o seu projeto político, ganharam uma presidência da República polarizando conosco, polarizando com o nosso projeto de sociedade. E qual é o nosso problema? Por sermos muito republicanos e democráticos a gente quer negociar, o próprio Partido dos Trabalhadores já tem uma prática, de outros quatro governos anteriores, em que a régua sempre foi de mediação, de conciliação, de negociação, agora existe um problema que é com a extrema direita, a negociação, a conta não fecha, porque o que eles querem não é apenas negociar um cargo, um projeto, eles querem a nação.
Eles têm um projeto próprio, eles não querem negociar o projeto deles com a gente, como nós também não podemos negociar o nosso com o deles. Então, muita gente tem o argumento de que a gente não pode polarizar, porque se a gente polariza entra em conflito, e aí piora tudo, etc, mas veja, eles já estão polarizando com a gente, nós não temos essa escolha de não polarizar, a polarização já existe, mas eles estão na função ativa da polarização e nós ficamos, normalmente, em uma função muito passiva. Então eu diria que, se a gente quiser vencer, seguir vencendo nas eleições e seguir vencendo como maioria da sociedade a gente precisa enfrentar essa polarização.
Eu diria que é polarizar, que é enfrentar, que é ter propostas e, principalmente, ter a capacidade de pressionar o governo Federal. O Lula não é capaz de fazer tudo sozinho, e digo até que o Lula é, talvez, uma das partes mais radicais do governo, mas ele não consegue fazer tudo só. A Câmara é um espaço de muita disputa, nós temos um presidente da Câmara que tenta atuar o tempo inteiro como primeiro-ministro, então, todas as pautas progressistas capazes de serem aprovadas no governo, elas só vão conseguir se tiver pressão no meio do povo.
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Edição: Camila Garcia