Ceará

Coluna

Mobilidade e Acessibilidade: rumo a uma Fortaleza justa e sustentável?

"Vale destacar que as políticas habitacionais implementadas nos últimos 20 anos tendem a afastar ainda mais a população de baixa renda das centralidades." - Divulgação/ fortaleza.ce.gov.br
consolida-se a ‘Cidade dos Pobres’, na região Sul e Oeste, com as piores condições de acessibilidade

Fortaleza, como toda grande cidade brasileira, deixou de ser ao longo do século XX ambiente de aproximação de relações humanas, sociais, culturais e econômicas, tendo cada vez mais transformado seu território em espaço de disputa de poder, concentração de renda e segregação social. Com expansão estruturada na sua malha viária, priorizando o transporte individual motorizado sobre o transporte coletivo, segmentos majoritários de baixa renda foram forçados a se periferizar para justificar elevados investimentos públicos em eixos viários radiais de acesso aos empregos concentrados no Centro da cidade, produzindo capital imobiliário-financeiro nos vazios interpostos entre mão de obra e atividade econômica. Como ato final dessa tragédia urbana planejada, indivíduos de renda mais alta vêm voluntariamente espraiando o tecido da metrópole, intensificando o apartheid social entre os seus vetores sudeste (dos ricos) e sudoeste (dos pobres), gerando graves impactos econômicos e ambientais frutos da necessidade crescente de mobilidade motorizada.

Observando a história do planejamento da mobilidade em Fortaleza, sua rede estruturante de transporte público por ônibus, proposta no Plano Diretor de Transporte Urbano (PDTU) no início dos anos 1980, só começou a se materializar uma década depois com a implantação do Sistema Integrado de Transportes de Fortaleza (SIT-FOR), tornando áreas periféricas do lado Oeste da cidade (ocupadas majoritariamente pela população de baixa renda) mais acessíveis pelo transporte coletivo, concentrando cinco dos atuais sete terminais fechados de integração. Vale ressaltar que, até 10 anos atrás, os ônibus circulavam sem qualquer prioridade na quase totalidade dessa rede, mesmo transportando mais de 2/3 da população de trabalhadores e estudantes, tendo que disputar o caro espaço viário com os carros e motos. Embora operando atualmente com bilhete único, o que possibilita a integração temporal nos deslocamentos dentro do município, a rede de linhas de ônibus do SIT-FOR é predominantemente tronco-alimentadora, fazendo com que muitas das viagens que se originam nas zonas periféricas da cidade ainda passem pelos terminais de integração, resultando em maiores tempos de deslocamento, assim como elevados tempos de espera e transbordo.

Já no âmbito metropolitano, além das linhas troncais de ônibus, duas linhas ferroviárias atendiam no final do século passado, com baixa frequência e pouco conforto, a uma parcela reduzida dos deslocamentos pendulares das pessoas residentes em Caucaia e Maracanaú para o Centro de Fortaleza. Embora com estudo de viabilidade técnico-econômica de substituição para a tecnologia metroviária forjado no início dos anos 2000, que tem resultado em investimentos bilionários desde então, esses dois corredores metropolitanos de transporte de massa, complementados por uma ligação (chamada de VLT) entre as regiões Sudoeste (Parangaba) e Nordeste (Papicu/Mucuripe) de Fortaleza, ainda operam atualmente com baixíssima frequência, parcialmente com tração a diesel, transportando menos de 50 mil passageiros por dia (mesma quantidade transportada nos trens da CBTU de 25 anos atrás), sem política de integração operacional ou tarifária com o SIT-FOR. 

Importante também observar que, a partir do início do século XXI, os poderes públicos municipal e estadual vêm desenvolvendo paralelamente vultosos investimentos em infraestrutura rodoviária, com destaque para as grandes obras viárias do lado Leste da cidade (vetor de adensamento de segmentos de alta renda), propostas já no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Fortaleza – PDDU/FOR (1992) e implementadas a partir do Programa de Transporte Urbano de Fortaleza – PTU/FOR (2000). Embora possibilitando a operação de novos corredores de ônibus, são mais evidentes as intervenções de ampliação da oferta da malha viária destinada ao tráfego geral, com a expansão das rodovias que ligam a região Central de Fortaleza aos municípios de Eusébio e Aquiraz, a implantação parcial do 1º anel expresso e corredores arteriais com túneis e viadutos ampliando a conexão com a região Sudeste da cidade, além de melhorias operacionais em vias da sua região Nordeste mais próximas ao litoral, proporcionando um acesso mais eficiente aos pontos turı́sticos na orla, assim como das cargas ao Porto do Mucuripe. 

Verifica-se ao longo das últimas décadas, portanto, o planejamento e a materialização de um sistema de transportes incapaz de combater as fortes desigualdades socioespaciais existentes no território de Fortaleza e sua região metropolitana. Ainda mais preocupante, análises sobre a evolução das nossas problemáticas locais de mobilidade e acessibilidade de pessoas e cargas, realizadas pelo Grupo de Pesquisa em Transporte, Trânsito e Meio Ambiente (GTTEMA) da UFC, indicam que as expansões da malha viária e da rede de transporte público vêm, na verdade, reforçando em Fortaleza a existência de duas realidades bem distintas e segregadas. Em primeiro plano, a ‘Cidade dos Ricos’, localizada na região Central e no lado Leste, que se encontra quase totalmente inserida no espaço da forte centralidade do território urbano, onde se concentra a oferta da grande maioria das oportunidades de emprego para todas as faixas de renda, permitindo, para quem ali reside, alcançar seus postos de trabalho por carro ou moto em menos de 30 minutos. 

Em contraponto, consolida-se justaposta a ‘Cidade dos Pobres’, localizada na região Sul e no lado Oeste do município, que vem sendo historicamente segregada em áreas com as piores condições de acessibilidade, gastando em média de 1 a 2 horas dentro dos ônibus até as oportunidades de trabalho destinadas a esse grupo mais vulnerável socialmente, além de comprometer uma fatia elevada do seu orçamento familiar com transporte quando forçados à informalidade do emprego. Vale destacar que as políticas habitacionais implementadas nos últimos 20 anos tendem a afastar ainda mais a população de baixa renda das centralidades, conduzindo esses grupos para novos assentamentos precários e conjuntos habitacionais financiados pelo Minha Casa Minha Vida localizados nas franjas urbanas e municípios adjacentes. Disto resulta o adensamento dos bairros periféricos ao sul e a intensificação do processo de conurbação entre Fortaleza e os municípios de Maracanaú e Caucaia. 

Cabe ressaltar que, a partir da aprovação da Política Nacional de Mobilidade Urbana em 2012, temos experimentado como alento em Fortaleza lúcidos impulsos de democratização do nosso extenso e privatizado espaço viário. Embasadas nas diretrizes da Lei Federal de Mobilidade Urbana (No. 12587/12), e apoiadas no conhecimento diferenciado de um corpo técnico local cultivado na nossa universidade pública, as últimas gestões da cidade vêm buscando priorizar a circulação de ônibus e bicicletas por meio de corredores e faixas exclusivas, envidando também esforços inovadores de promoção da segurança viária com significativa redução do número de fatalidades no trânsito. Infelizmente, a proliferação descontrolada e pouco fiscalizada das motocicletas, além do crescimento do transporte por aplicativo, tem diminuído o volume de passageiros no transporte coletivo, servindo de pretexto a gestores e operadores para reduzirem a oferta nas linhas de ônibus em prol da suposta eficiência do transporte público, desviando o foco da essência do seu financiamento.

Neste sentido, esperamos que o debate nesta eleição municipal abra espaço para aprofundar o questionamento político de modo a abrir possibilidades de reversão dessa lógica urbana tão injusta socialmente, além de insustentável econômica e ambientalmente. E que ainda tenhamos tempo para, de forma realmente participativa, discutir e renegociar as diretrizes e regulamentações do nosso novo Plano Diretor em prol de um desenvolvimento urbano que permita efetivamente garantir o direito de todas as pessoas à cidade, produzindo melhoria da qualidade de vida com maior equidade no acesso às oportunidades de trabalho, educação, saúde, cultura e lazer, por meio de uma mobilidade cada vez mais ativa, segura e includente para nossas futuras gerações.

*Felipe Loureiro, professor Titular do Departamento de Engenharia de Transportes da UFC, Pesquisador com bolsa de Produtividade do CNPq, Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Planejamento da Acessibilidade e Mobilidade na Urbe Sustentável e da Rede Cooperativa de Pesquisa em Transporte Público no Acesso Equitativo e Sustentável nas Metrópoles Brasileiras.

*Renato Pequeno, professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e coordenador do Laboratorio de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Camila Garcia