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Neoliberalismo, mineração e gestão das águas no Brasil – parte final

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No centro do Problema Nuclear Brasileiro Santa Quitéria vive um impasse: 89 carros pipa por hora para mineração de urânio e fosfato ou para o povo viver, trabalhar e produzir? - Pedro D'Andrea
Segundo a CPT desde 2014 as mineradoras assumiram o predomínio dos conflitos por água no Brasil

Já evidenciamos aqui que a espoliação do setor mineral sobre as águas no Brasil seguiu por duas linhas. A primeira delas buscou evidenciar as costuras políticas e econômicas em escala global que constituíram consensos em torno da mercantilização do bem comum. Tido como passo norteador, viabilizaram o processo de universalização de um consenso em torno da escassez, da sua necessidade de dotar valor como suposto mecanismo de controle do uso abusivo e multiplicar ao redor do planeta uma política neoliberal de gestão das águas. A Política Nacional de Recursos dricos é, portanto, um primeiro momento histórico importante para viabilizar o processo de apropriação capitalista da água por setores hidro-intensivos. Sobre o processo da confluência perversa, o Estado perde a centralização da gestão dos recursos hídricos através da incorporação dos setores econômicos e da sociedade civil. O que se observa é que há, na realidade, uma recentralização da política de gestão que passa a atender os interesses destes setores econômicos hegemônicos.

 

A segunda delas, parte do princípio de que o consenso da escassez é parte integrante e fundamental que viabiliza a consolidação do consenso das commodities, resultado da intensificação do modelo neoextrativista brasileiro. Esse caráter de elevada exploração de bens primários para sua comercialização com baixo valor agregado, só é possível pela apropriação em larga escala do solo, água, subsolo e trabalho precarizado. Os dados deflagrados através da sistematização das informações disponibilizadas nos registros de outorga de uso da água apresentam tamanha desigualdade do acesso a água no país. São 1,8 bilhões de litros por hora reservados ao setor mineral, o que permitiria o abastecimento de 298 milhões de pessoas, quando comparado a média de consumo per capita no Brasil. Para além da totalidade desta apropriação e da concentração estadual onde se localizam a maior parte desta vazão, os recortes regionais auxiliam a compreensão da complexidade do aprofundamento da questão hídrica e mineral que está posta.

 

Há um evidente processo de espoliação das águas brasileiras pelo setor mineral que tende a ser nacionalmente percebido em escala regional ou nacional pelo caráter contaminador e destruidor do setor. Foi assim com o rompimento da barragem da Vale S.A, BHA Billiton e Samarco, em Mariana-MG; da Vale S.A, em Brumadinho-MG; e da Hydro Alunorte, em Barcarena-PA. Ou mais recentemente, através do garimpo ilegal na bacia do Rio Branco, em Roraima. O fato é que independente da comoção nacional em torno dos crimes provocados por grandes mineradoras, são os territórios que enfrentam histórica e cotidianamente os conflitos cada vez mais intensos provocados pelo setor. Para aqueles e aquelas que dependem de um córrego, riacho ou rio, a impossibilidade de usá-lo seja pela apropriação privada que provoca ou acirra a escassez, seja pela sua contaminação, a escala em jogo é a de ruptura das condições metabólicas de reprodução da vida.

 

Segundo os dados sistematizados pela CPT desde 2014 as mineradoras assumiram o predomínio dos conflitos por água no campo brasileiro. Os conflitos provocados pelas mineradoras até 2014 ocorriam predominantemente por terra, a partir de 2017 houve uma mudança no padrão e os casos passaram a apresentar maioria de conflitos por água, chegando a apresentar o dobro de conflitos por terra em 2018 e 2019. Considerando o período entre 2011 e 2020, 58% dos casos de conflitos pelas mineradoras ocorreram em disputa pela água e 42% por terra. Em relação a totalidade de ocorrências de conflito por água, assumiram protagonismo ao responder por 43%, dos quais 30% concentradas na região nordeste. Ou seja, o modelo mineral brasileiro possui centralidade nos conflitos por água no país e deve estar na gênese das lutas e resistências contra este padrão de acumulação a defesa das águas e o controle social sobre sua gestão.

 

O estado de Minas Gerais contabilizou 37% das ocorrências de conflito, notadamente marcados pelos crimes antes mencionados. A Bahia concentra 21% das ocorrências, o Pará aparece com 12%, também em virtude do ocorrido em Barcarena e por abrigar o Grande Projeto Carajás em conjunto com o Maranhão, que o coloca com 11%. As mineradoras nacionais, sem diferenciar o tamanho da operação, concentram 47,9% das ocorrências, enquanto as internacionais respondem por 44,9% e garimpeiros 7%.

 

A ilegalidade é um traço expressivo dos conflitos por água no Brasil. Sinalizam que cerca de 71 (23%) ocorrências envolveram o descumprimento de preceitos legais, das quais 40 envolviam a construção de barragens e açudes por mineradoras internacionais. Todavia, apontam o papel da institucionalidade que legaliza o aprofundamento da injustiça hídrica, evidenciando a frágil capacidade de fiscalização de órgãos estatais ao apontar que nos últimos dez anos não houve qualquer cassação e/ou suspensão das outorgas de direitos de uso da água, conforme preconizado pelo Art. 15 da PNRH. Por exemplo, a Vale S.A, BHP Billiton e Samarco não tiveram suas outorgas nem sequer suspensas em razão do crime que provocou o rompimento da barragem em Mariana-MG e o mesmo não ocorreu com a Vale S.A em Brumadinho-MG.

 

Quando visto em conjunto com os dados apresentados no texto anterior em relação ao volume de água utilizado pelo setor mineral, as múltiplas formas de cercamento das águas são legitimadas a partir da legalidade construída por dentro e pelo Estado. As estratégias de ocupação pelo capital dos espaços institucionais de regulação da gestão da água levam à centralização do controle da gestão da água para o capital. Repetir e utilizar estes instrumentos institucionais enquanto única forma de disputa pelo controle da água, aqui entendida enquanto conselhos e comitês de bacia hidrográfica, é, por fim, legitimar as estruturas organizacionais pautada pela burguesia.

 

Todavia, há de se ter cuidado em não reproduzir uma ideologia hegemônica que transfere o fracasso para os objetos do fracasso no sistema capitalista. A questão central não está na mineração em si, mas na forma como ela é organizada: de fora para dentro, muito cara para a sociedade brasileira, muito demandante de natureza e trabalho precarizado, por isso, deixando ruína por onde passa. O fracasso é, portanto, e evidentemente, este modelo.

 

Há muito acúmulo político que resulta das lutas populares em defesa das águas no Brasil. Tal processo de conflitualidade não é novo e se forja sobre velhas, porém atualizadas, formas de dominação e violência. Entretanto, é necessário articular as múltiplas estratégias de enfrentamento que tem sido forjada por estas lutas, os balanços que delas são resultados, os precedentes jurídicos criados e a se criar em escalas locais/regionais e direcionar em passos contínuos e históricos a crítica à Política Nacional de Recursos Hídricos em articulação com as linhas programáticas dos movimentos populares anticapitalistas que direta ou indiretamente têm a defesa das águas como pauta de ação política.

 

*Pedro D’Andrea, geógrafo e educador popular, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Camila Garcia