... Não é a pornografia que é obscena, é a fome que é obscena. E enquanto nós não compreendermos isto, que não há o direito, que não há nenhuma razão para que um único ser humano morra de fome, então todo o discurso sobre a moralidade pública é um discurso hipócrita. (trecho de entrevista que José Saramago concedeu para Jô Soares no Programa Onze e Meia em Abril de 1997 no SBT).
É com este pensamento do mestre e escritor português José Saramago que iniciamos nossa reflexão sobre o adoecimento mental de uma considerável parcela do povo brasileiro habitante das periferias de nossas grandes cidades. Entre todos os problemas urbanos, considerados pilares estruturantes da crise do sistema capitalista em que estamos inseridos e que vêm se aprofundando ao longo de décadas, as doenças mentais parecem ser um fenômeno mais contemporâneo às novas gerações, paralelamente ao fenômeno da fome, curiosamente tão presente na realidade deste país conhecido mundialmente por suas riquezas naturais e produção alimentar. No entanto, é impossível dissociar o aumento do adoecimento mental da população, principalmente da classe trabalhadora e moradora das periferias empobrecidas ao caos gerado pelo desgoverno Bolsonaro e o fenômeno da pandemia da covid iniciada a partir de 2020.
Como militante dos Direitos Humanos, participei das campanhas nacionais de solidariedade e erradicação da fome e busca por segurança alimentar como o "Periferia Viva", organizada pelo conjunto de movimentos sociais do campo progressista e popular. Nós, ao levarmos alimento às comunidades, testemunhamos dezenas de casos de saúde mental, inclusive na minha própria casa, onde observei de perto o aumento das crises de ansiedade e depressão, que se tornaram cada vez mais comuns naquele período infernal e desesperançoso.
O fato é que a partir da chegada da pandemia do coronavírus ao nosso país, dados da Organização Mundial da Saúde mostram que no primeiro ano da covid-19, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25% em nossa população de baixa renda. Sabemos que o nosso povo vive no “fio de navalha” em busca de sua sobrevivência diária, e não é uma mera ilustração afirmar que a principal missão de quem é chefe de família nesta enorme parcela de nossa população é a garantia do pão de cada dia em seus lares. Viver com a incerteza de não ter comida para alimentar os filhos é, sem dúvida, um desespero constante, uma pressão incessante que dura vinte e quatro horas por dia. Quero enfatizar aqui que a pandemia apenas intensificou a realidade latente nos círculos familiares periféricos.
Nesse contexto, com muita convicção, afirmo que a falta de comida, combinada com o isolamento social e as restrições à vida ativa, resultou num impacto devastador para a saúde mental dos brasileiros. As pessoas perderam a capacidade de trabalhar, buscar apoio familiar e manter conexões sociais. Os noticiários sempre pessimistas, relatando o tempo todo a falta de UTIs, oxigênios, vacina, assim como a falta de esperança combinado ao isolamento e a solidão, o medo de se infectar, o tormento de uma morte eminente e o sofrimento pela perda de entes queridos foram fatores estressores determinantes e significativos que contribuíram para um aumento sem precedentes de ansiedade e depressão em nossa população.
Entretanto, o vírus mortal apenas ampliou esses fatores principais. Sem dúvidas, a explicação para o aumento das doenças mentais na periferia foi: a fome, uma mazela herdada do governo passado e que continua a afetar nossas comunidades até os dias de hoje.
Atualmente, a questão da saúde mental dos moradores das periferias é um fenômeno grave e severo que está relacionado a muitos fatores, incluindo a luta por “um bom lugar” para se viver, um ambiente saudável, algo inexistente na grande Fortaleza pobre. A rotina diária de sobrevivência em bairros empobrecidos, com um histórico constante de violência, discriminação, racismo e outras formas de opressão, são agravados por ruas escuras, paradas de ônibus inseguras, falta de transporte público, deslocamentos longos em ônibus lotados, trabalhos precarizados e a permanente guerra de facções criminosas que não poupa ninguém: crianças, adolescentes, mulheres, idosos, religiosos, famílias, escolas e templos. Além disso, tem a brutalidade policial que muitos trabalhadores, especialmente a juventude negra, infelizmente, vivenciam na pele. Os territórios segregados e esses determinantes políticos e sociais vêm contribuindo para mudanças comportamentais, levando ao aumento de episódios de adoecimento psicológico.
Mesmo com um governo popular e democrático voltado para a classe trabalhadora, as atuais políticas públicas têm ganhado forma em ritmo muito lento, e as mudanças concretas necessárias e urgentes ainda não aconteceram a contento, enquanto isso, o índice considerável de desemprego, as recorrentes mudanças na economia e a falta de segurança pública, em um Brasil com alta taxa de violência, acarreta em nossa população uma enorme insegurança quanto ao seu futuro e a sua qualidade de vida. Esses fatores geram sentimentos de medo, preocupação e angústia, contribuindo para a alta prevalência de transtornos mentais, exacerbando a problemática crescente e desenfreada da saúde mental nas periferias. Quais os caminhos, e quais as políticas públicas que devem surgir para esse novo normal? A sociedade civil e o governo conseguirão apontar saídas eficazes e urgentes para o tratamento voltado para a diminuição do adoecimento mental na periferia? Por enquanto, deixo essas indagações como reflexão sobre o tema que por ora apresento.
* Rogério Babau, mestre em geografia, assistente social, militante dos Direitos Humanos e da Paz na Periferia e do Movimento Brasil Popular.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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Edição: Camila Garcia