Ceará

Coluna

Qual o papel da assistência técnica como caminho para efetivação do direito à moradia em Fortaleza?

Vista do Conjunto Santa Edwirges, no Bonsucesso, em Fortaleza. - Foto: Vinicius Saraiva Barretto
É preciso formular e implementar uma política pública municipal que contemple a assistência técnica.

O problema da moradia é um dos grandes desafios enfrentados pela sociedade brasileira. Dados oficiais recentes, publicados pela Fundação João Pinheiro, a partir do Censo Demográfico de 2022, indicam a necessidade de construção de cerca de seis milhões de habitações, o que corresponde a 8,3% dos domicílios ocupados no país. No entanto, as necessidades habitacionais no Brasil são bastante complexas e diversas e vão além da demanda pela construção de novas unidades habitacionais, principal resposta que o poder público, historicamente, tem dado à questão.

Outra forma de observar o problema é a partir das habitações consideradas inadequadas, aquelas que apresentam algum tipo de carência ou irregularidade construtiva, fundiária ou de infraestrutura. Dados da Fundação João Pinheiro de 2022 indicaram que o Brasil possuía cerca de 26,5 milhões de moradias consideradas inadequadas, o equivalente a 41,2% dos domicílios. Dados de 2019, também da Fundação João Pinheiro, indicaram que 531 mil moradias - o que representava quase 42% das habitações - eram consideradas inadequadas na Região Metropolitana de Fortaleza.

Esses números demonstram o resultado da forma como a maior parte da população encontra para morar nas cidades. No Brasil, é comum que muitas pessoas, especialmente de baixa renda, construam suas moradias sem orientação técnica adequada. Isso geralmente ocorre devido à falta de recursos financeiros ou ausência de políticas públicas que atendam a demanda habitacional dessas populações. Essa prática, embora represente uma solução imediata para a necessidade de abrigo, muitas vezes resulta em edificações com problemas estruturais, de segurança, conforto e salubridade, impactando também na saúde dos moradores.

Levantamento realizado em 2022 pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil apontou que apenas 18% das pessoas que construíram ou reformaram suas casas tinham contratado serviços de arquitetura e urbanismo ou de engenharia. Dados de 2018, da Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção, indicam que o varejo é o grande comprador de materiais de construção, consumindo quase 37% de tudo o que é produzido em insumos. Pesquisa da mesma associação, realizada em 2005, indicou que aproximadamente 84% da venda de materiais de construção foi feita para pessoas físicas e que cerca de 77% das unidades foram construídas, ampliadas e reformadas em regime de autoconstrução.

Esses dados dão uma dimensão da autoconstrução no Brasil. Em geral, as moradias autoconstruídas estão localizadas em favelas, comunidades urbanas, loteamentos irregulares ou até mesmo em conjuntos habitacionais, cujo projeto já não atende às demandas dos moradores. Atualmente, segundo dados preliminares do Censo Demográfico de 2022, existem mais de dez mil favelas e comunidades urbanas no Brasil, onde vivem 16,6 milhões de pessoas ou 8% da população. Levantamento feito em 2012 pelo Plano Local de Habitação de Interesse Social de Fortaleza indicou a existência de 843 assentamentos precários que possuíam 143.905 moradias, o que representava 27,4% dos domicílios na capital cearense naquele ano. Aqueles territórios abrigavam aproximadamente 1,1 milhão de pessoas, montante equivalente a mais de 41% da população fortalezense.

Diante dessa realidade, faz-se necessário formular e implementar políticas públicas que reconheçam a dimensão da autoconstrução nas favelas e comunidades urbanas, territórios ocupados por parcela significativa da população de baixa renda nas cidades brasileiras. As moradias inadequadas constituem uma das facetas do complexo problema habitacional brasileiro e demandam ações que devem ser distintas e complementares à construção de novas unidades habitacionais, como tem sido feito nos últimos anos através do Programa Minha Casa Minha Vida.

A urbanização de favelas com garantia de permanência dos moradores no mesmo local ou em trechos adjacentes e as Zonas Especiais de Interesse Social são algumas das conquistas históricas que demarcam o reconhecimento pelo poder público destes territórios precarizados - quase sempre ocupados pela população de baixa renda que mora em edificações autoconstruídas - como pertencentes à cidade. Outra conquista importante, mas que não tem sido suficiente para efetivação do direito à moradia conforme posto no texto constitucional, é a Lei Federal 11.888 de 2008, conhecida como Lei da Assistência Técnica. Esta lei assegura às famílias de baixa renda o serviço de assistência técnica pública e gratuita para o projeto, a reforma e a construção de suas moradias. A Lei da Assistência Técnica visa proporcionar suporte técnico às famílias de baixa renda, facilitando o acesso a serviços de engenharia, arquitetura e urbanismo para a construção, reforma ou regularização de suas habitações, constituindo o que tem sido chamado de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS).

Em Fortaleza, ocorreram algumas experiências de assistência técnica, conduzidas ou fomentadas por instituições diversas. Dentre elas, podemos listar as fundações e companhias municipais e estaduais nas décadas de 1980 e 1990, e a ONG Cearah Periferia, com o programa Casa Melhor e a urbanização no Bom Sucesso. Mais recentemente são observadas ações conduzidas por assessorias profissionais e universidades; e outras fomentadas por editais do Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Contudo, estas ações têm caráter pontual ou de atendimento parcial, não se constituindo enquanto política pública ampla e capaz de enfrentar o problema habitacional associado às autoconstruções em assentamentos precarizados da capital cearense.

Para que o problema das moradias inadequadas seja efetivamente enfrentado, é preciso formular e implementar uma política pública municipal que contemple a assistência técnica, usando os preceitos contidos na Lei Federal 11.888 e também no Estatuto da Cidade. Essa política poderia, inclusive, recuperar propostas já formuladas, mas que não foram implementadas. O Plano Local de Habitação de Interesse Social de Fortaleza, de 2012, indicou melhorias habitacionais como uma de suas linhas programáticas, apontando para o financiamento de material de construção acompanhado de assistência técnica e capacitação. 

Contudo, tão importante quanto formular uma política pública de ATHIS é garantir recursos para que haja, de fato, a melhoria nas condições de moradia. Para além de planos e projetos, as pessoas precisam de recursos financeiros para pagar os profissionais envolvidos e comprar materiais de construção e outros componentes construtivos para suas residências. Ademais, a formulação de uma política municipal deve envolver os diversos sujeitos que têm atuado - com, sem ou apesar da participação estatal - na assistência técnica. Dentre estes sujeitos, destacam-se os movimentos populares de luta por moradia e as assessorias técnicas que têm atuado dando suporte técnico e institucional junto a movimentos populares e comunidades urbanas. 

A formulação de uma política municipal de ATHIS também é importante por permitir enfrentar o problema habitacional diverso, justamente com uma diversidade de programas e ações. Ao possibilitar que moradias sejam construídas ou reformadas seguindo padrões de qualidade e segurança, a assistência técnica atua em uma demanda que, em geral, as políticas de provisão habitacional não contemplam. A assistência técnica chega a setores da cidade que, em sua maioria, apresenta dificuldade de se encaixar nos parâmetros e exigências legais da cidade dita formal. A presença de técnicos através de escritórios de campo ou associados a unidades básicas de saúde pode ser uma alternativa essencial para a incidência nessa escala urbana. É nesse sentido que expectativas têm surgido com a recriação do Ministério das Cidades e da atuação da nova Secretaria de Periferias. Isso porque ocorre a retomada de programas federais que buscam inserir a prática da assistência técnica junto a comunidades urbanas e movimentos populares, como o Minha Casa Minha Vida Entidades e, mais recentemente, o programa Periferia Viva, associado ao novo Programa de Aceleração do Crescimento.

A implementação efetiva da Lei da Assistência Técnica por meio de uma política municipal de habitação reforça o papel do Estado na garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Entende-se que a assistência técnica é um caminho para efetivação do direito à moradia em Fortaleza e a incorporação da ATHIS em políticas públicas e programas habitacionais possibilitaria enfrentar outras camadas do problema habitacional que a provisão de  novas moradias não contempla. Ao investir na intervenção em favelas e na melhoria das habitações populares através da ATHIS, o poder público cumpre seu dever de promover o bem-estar da população.

*Vinicius Saraiva Barretto, mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAUD – UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará e assessor técnico do Quintau Coletivo e Taramela ATAC.

**Rérisson Máximo, professor do IFCE, conselheiro estadual do CAU-CE e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Francisco Barbosa