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Coluna

Quanto custa morar em Fortaleza? Descompassos e dificuldades no acesso à moradia em uma cidade cada vez mais desigual

Vista da Comunidade Raízes da Praia. - Foto: Sara Vieira Rosa
Fortaleza tem reduzido o orçamento municipal para habitação, mesmo arrecadando cada vez mais.

Quanto custa morar em Fortaleza? O salário da maior parte da população da cidade é suficiente para acessar a moradia, seja através da compra ou do aluguel? Como as pessoas sem renda e nas faixas de renda baixa solucionam o morar, condição inerente ao viver? O que a política urbana, o orçamento municipal e o Plano Diretor têm a ver com isso?

Em geral, a moradia, que é vendida junto com a terra, possui um preço que não cabe no bolso da maior parte da população brasileira, gerando, assim, um descompasso entre os preços das habitações e os salários dos trabalhadores. O aumento do preço da moradia e dos salários também não seguem a mesma lógica, estando o primeiro em patamares sempre acima da inflação e os salários, geralmente abaixo. 

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 2023, o rendimento médio de todas as fontes, considerando a população com rendimento, aumentou 7,5% em relação a 2022, atingindo a 2.846,00 reais.  Todavia, esse valor ainda é inferior ao registrado em 2014, de 2.850,00 reais. Já olhando para o preço da moradia, segundo dados do Fipezap, apenas em 2023, o preço dos aluguéis no país subiu 16,22%. Em Fortaleza, o aumento foi inclusive acima da média nacional, chegando a 19,04%, quatro vezes acima da inflação que, para 2023, foi de 4.62%. O preço de venda, na capital cearense, não subiu na mesma proporção, porém seguiu em alta e fechou 2023 acima da inflação, com um aumento de 4,72% para os imóveis residenciais.

Esse descompasso entre os salários e o preço da moradia gera uma demanda ascendente por habitação, que não consegue ser resolvida via mercado, provocando o aumento do déficit habitacional. A produção habitacional de interesse social - via Estado - pode amenizar esse efeito, mas não deveria ser o único meio. Contudo, apesar do recorrente aumento do déficit, do aumento das áreas de favelas e seu adensamento e do surgimento de novas ocupações - as mais recentes devido à incapacidade das famílias de pagarem o aluguel durante a pandemia -, o município de Fortaleza tem reduzido ano após ano o orçamento municipal para habitação, mesmo arrecadando cada vez mais. Aqui chegamos ao segundo descompasso, apesar do aumento da falta de habitação e da precariedade das condições de moradia das populações de baixa renda, a Prefeitura investe cada vez menos no setor habitacional. 

Só para exemplificar, a partir de análises do orçamento do município, temos que, em 2003, o município destinava 4,7% do seu orçamento para habitação. Em 2012, chegou a destinar 6,5%, ano em que destinou o maior percentual do seu orçamento para tanto. Desde então, a cada ano o município tem reduzido o investimento em programas habitacionais. Nos últimos três anos (2021-2023), foi reservado apenas 0,7%. Todavia, a receita total do município vem aumentando consideravelmente, enquanto em 2003 a previsão orçamentária para todas as funções era próxima a 1,5 bilhão de reais, hoje se aproxima dos 11 bilhões de reais, um aumento de quase dez vezes na arrecadação.

Por um lado, ao se comparar os valores gastos / empenhados versus os previstos, percebe-se que as previsões orçamentárias totais do município têm se concretizado. Em 2022, o município empenhou 103% da sua previsão orçamentária total, ou seja, 10,28 bilhões de reais empenhados de uma previsão inicial dada na Lei Orçamentária, de 9,93 bilhões de reais. Por outro lado, mesmo com a baixa previsão orçamentária para habitação, o município encerrou o ano sem aplicar o total do recurso: Fortaleza gastou apenas 37,5% do total de 69 milhões de reais, o que significa apenas 0,3% da despesa total do município.

Já outras pastas, como segurança pública, têm recebido um investimento crescente ao longo dos anos. Se em 2003 tinha uma previsão orçamentária mais baixa que a de habitação, em 2024 a previsão para segurança foi de mais de 4 vezes acima do valor destinado à habitação. Mas é importante compreendermos que uma política pública de segurança que não caminha junto com políticas de diminuição de desigualdades e de garantias dos direitos básicos para sua população, como alimentação e moradia, está fadada ao fracasso.

Frente às dificuldades no acesso à moradia pelos mais pobres, o que aguardar do novo plano diretor?

Atualmente, Fortaleza está passando pela revisão do Plano Diretor, sendo uma janela de oportunidade para tentar quebrar alguns desses descompassos apontados. No entanto, ao que tudo indica, se nada for feito, o novo Plano trará novos descompassos, intensificando os processos de desigualdade e segregação socioespacial na cidade. 

Em vez de corrigir problemas do Plano vigente, o município tem realizado propostas que enfraquecem ainda mais os poucos instrumentos que dispomos para minimizar efeitos de desigualdade e para garantir melhores condições de moradia para a população de renda mais baixa. Para começar, a proposta do novo Plano Diretor divulgada pela prefeitura não traz uma definição do que seria Habitação de interesse social, algo fundamental para que o município possa traçar suas políticas, estratégias e programas habitacionais. Vale destacar que recentemente a Prefeitura enviou um Projeto de Lei, aprovado pela Câmara (L.C. 384/2023), sem cumprir com o rito obrigatório de passar pelo conselho municipal de habitação, definindo Habitação de interesse social como aquela voltada para famílias com renda de até oito mil Reais! A referida lei, além de não seguir os trâmites de debate e aprovação, contrariou a Lei Municipal da Política de Habitação de Interesse Social, que define Habitação de interesse social, como aquela destinada às famílias com renda domiciliar de zero a três salários-mínimos. Justamente a faixa que concentra a maior parte do déficit habitacional a nível nacional, e também na cidade de Fortaleza. Dados da Fundação João Pinheiro apontam que 74,5% do déficit habitacional se concentra na faixa de renda de até 2 salários-mínimos.

Além da indefinição local de habitação de interesse social no Plano Diretor, e da nova lei que considera famílias com até 8 mil reais dentro do pacote, o município reduziu os terrenos das zonas especiais de interesse social de vazios, destinados anteriormente para habitação de interesse social, e definiu, para os poucos restantes, parâmetros construtivos incompatíveis com a tipologia em questão. A nova proposta define parâmetros muito elevados, equivalentes a edifícios de 48m de altura (16 andares). Contudo, é importante destacar que edificações verticais para famílias com zero a três salários-mínimos de renda têm-se mostrado inviável, uma vez que a manutenção do edifício, elevador, casa de máquinas, dentre outros, torna-se insustentável. Isso põe em risco a própria implementação de uma política habitacional, já que abre espaço para que os poucos terrenos destinados à demanda social possam ser usados para o atendimento de setores da classe média.
 
Paralelamente, Fortaleza, tem recebido projetos de enormes edifícios verticais, que buscam uma estética similar àqueles construídos em Dubai. São edifícios que chegam a alcançar 165m de altura, com apartamentos comercializados por valores de 5 a 13 milhões de reais, viabilizados por flexibilização da legislação urbana e dos parâmetros urbanísticos do Plano Diretor. Esse tipo de produção tende a atender a demanda de grandes investidores, não atingindo as necessidades reais da nossa cidade. As propostas para o novo Plano Diretor, até o momento, reforçam essa lógica, trazendo parâmetros construtivos ainda mais permissivos que estabelecem, em parte da cidade, a possibilidade de construir muito acima do que antes era permitido. Esse processo, produz uma especulação de produção futura superior, elevando o preço do solo e das habitações, aumentando ainda mais a dificuldade de acesso à moradia para grande parte dos fortalezenses, seja via mercado ou via Estado.

É importante que os novos gestores olhem para a questão da moradia com a atenção que ela merece. O problema habitacional e as dificuldades ou impossibilidades de acesso à moradia não são casos particulares. Cada vez mais, eles impactam a maioria da população da nossa cidade, sobretudo os mais pobres, justamente aqueles que deveriam ser prioridade nos conteúdos das políticas habitacionais de interesse social e na destinação de recursos.
 
Por fim, frente às desigualdades que assolam Fortaleza, é importante destacar algumas proposições: destinar mais terrenos para atender à demanda social, que possam promover a democratização do acesso à terra urbanizada; garantir a previsão de maiores orçamentos anuais para a função habitação; atualizar os planos locais habitacionais de interesse social, incluindo estratégias para implementar programas habitacionais alternativos e adequados à realidade local; e promover a associação entre a política habitacional e às demais políticas urbanas.

*Sara Vieira Rosa, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Luciano Feijão e pesquisadora do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará. 

** Marcelo Mota Capasso, professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unichristus e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Camila Garcia