Ceará

Coluna

A dissociação entre a política urbana e a política habitacional em Fortaleza - O caso das ZEIS

Vista aérea da ZEIS do Mucuripe. - Foto: Sara Vieira Rosa.
Em Fortaleza, as ZEIS foram criadas em 2009 quando da aprovação do último plano diretor de Fortaleza

Um dos principais desafios para as políticas públicas no país é a garantia de acesso à moradia digna. Apenas de 2019 a 2023, houve, segundo o IBGE, um incremento de 4,2% na falta de moradias adequadas, sendo que o indicador que se destacou foi exatamente o custo dos aluguéis, respondendo atualmente por 52% por déficit habitacional. Segundo o índice Fipezap, apenas em 2023, o preço dos aluguéis no país subiu 16,16%, três vezes acima da inflação, comprometendo pelo menos um terço do orçamento de famílias com renda de até três salários-mínimos. Se em 2010 o déficit girava em torno de 6,49 milhões de domicílios, em 2022, o número atingiu novamente o patamar de 6 milhões.

De acordo com o Plano Habitacional de Fortaleza, a capital cearense é a sétima capital do país em número de favelas, abrigando cerca de 750 mil famílias. Além disso, segundo dados da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Habitacional, as famílias cadastradas para os programas de interesse social do Município já chegam perto de 200 mil, revelando a proeminência do problema para a política pública local.

Esses números revelam o quão urgente é refletir sobre os caminhos que tem tomado a política habitacional, especialmente porque o déficit habitacional quantitativo tem se ampliado expressivamente nas faixas de renda de até dois salários-mínimos localizadas nas metrópoles, conforme aponta a Fundação João Pinheiro. Afinal, sem acesso ao mercado formal nem a políticas públicas de habitação, resta à população vulnerável buscar abrigo em qualquer lugar disponível, formando os assentamentos informais, precários e, muitas vezes, em áreas de risco ambiental. 

Essa reflexão tangencia especialmente a integração eficaz da política habitacional à de desenvolvimento urbano, condição que, não por acaso, é diretriz central da Política Nacional de Habitação, vigente desde 2006. É, dessa forma, no Plano Diretor – documento que orienta o desenvolvimento urbano em nível local – que devem ser regulamentados os instrumentos que garantam o acesso à terra urbana bem localizada, com infraestrutura e serviços urbanos, pela população economicamente mais vulnerável. Para garanti-lo, as duas dimensões do déficit, quantitativa e qualitativa, devem estar representadas, cujas soluções devem ser realizadas simultaneamente: contemplar as favelas e os cortiços com melhoramentos urbanísticos e nas edificações, assim como reservar, para a moradia popular, parte das terras e imóveis vazios localizados em áreas com infraestrutura e serviços urbanos consolidados – esses últimos se prestam, em primeira instância, a receber população deslocada de áreas de risco ambiental.

No caso da necessária integração entre as políticas públicas de habitação e desenvolvimento urbano, os instrumentos são espécies de soluções destinadas à superação ou mitigação das causas do déficit habitacional, dentre os quais cabe um amplo destaque às Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS: a sua orientação específica à garantia do direito à moradia foi uma inovação dentre os instrumentos de racionalidade urbanística. Enquanto espécie de zoneamento, devem ser delimitados os espaços prioritários na cidade para investimentos públicos e privados em habitação de interesse social, em melhoramento da qualidade ambiental, na implantação e consolidação da infraestrutura básica quanto na construção e na reforma de casas e edifícios residenciais que atendam as populações com dificuldade de acesso ao mercado formal de moradias.

Em Fortaleza, as ZEIS foram finalmente criadas quando da aprovação do último plano diretor de Fortaleza, em 2009, ou seja, uma das últimas capitais do país a incorporar o instrumento como alternativa de enfrentamento ao problema da moradia. Fruto da articulação entre ONGs, representantes dos movimentos e setores progressistas das universidades públicas na exigibilidade de direitos, a enorme quantidade de proposições populares, à época, de delimitação das ZEIS foi reveladora de pelo menos duas condições: a extensão espacial do problema em Fortaleza, onde praticamente mais de um terço da população mora em áreas precárias; o empoderamento da população quanto aos seus direitos e as alternativas para garanti-los.

Sem dúvida, a importância das ZEIS se vislumbra exatamente no equacionamento entre interesses privados de exploração econômica do solo e a garantia de moradia adequada para a população economicamente mais vulnerável: uma vez que uma área seja delimitada como ZEIS, é o direito à moradia que deve prevalecer sobre o direito à propriedade - pelo menos em tese. Não à toa, os movimentos locais reivindicaram sua delimitação em praticamente todas as regionais (subdivisão administrativa) do Município de Fortaleza.

Quando falamos de direito à moradia para a população “excluída” do mercado residencial formal, há dois eixos estratégicos bem evidentes: ou fixar a população onde já está, lhe garantindo moradias e infraestrutura e serviços urbanos básicos ali mesmo, ou, destinar espaços vazios para a habitação de interesse social, cujos empreendimentos recebam populações deslocadas de áreas impróprias à ocupação urbana, especialmente de risco à vida. Em ambos os casos, a garantia de não ver sua casa desaparecer sob um trator se dá pela segurança jurídica da posse, ou seja, a titulação ou “papel da casa”.

Abrangendo as diversas estratégias, as ZEIS em Fortaleza foram divididas em três categorias: 45 ZEIS 1, delimitadas sobre favelas; 56 ZEIS 2, sobre conjuntos habitacionais precários; 34 ZEIS 3, sobre áreas da cidade com grande ocorrência de terrenos vazios, em áreas onde a infraestrutura urbana esteja instalada, se prestando à construção de moradias de interesse social. 

Enquanto os dois primeiros tipos de ZEIS indicam a prioridade para a regularização fundiária, com titulação da posse e obras de urbanização, o terceiro, em teoria, deve se encontrar em áreas onde a infraestrutura esteja plenamente instalada e não esteja sendo otimizada. Dessa forma, as ZEIS 3 – ou ZEIS Vazios – devem ser delimitadas exatamente onde exista um grande número de terrenos vazios, sem construção, e que estão servindo à especulação imobiliária, ou seja, à retenção do imóvel pelo proprietário aguardando valorização do solo para extrair o maior preço possível quando se realizar a produção imobiliária.

Apesar de a ZEIS Vazios ser a categoria efetivamente direcionada ao déficit quantitativo - tocando, portanto, a questão fundiária -, é a que tem encontrado os maiores entraves políticos para a sua consecução. O veto na Câmara Municipal à delimitação do instrumento no Centro de Fortaleza, área que se destaca na ocorrência de vazios urbanos, é emblemático do conflito de interesses envolvendo o preço do solo urbano e o direito à moradia. Além disso, no próprio plano diretor foi aprovado, à época, o decréscimo anual de 5% da área delimitada como ZEIS Vazios, permitindo-lhe novamente ser destinada ao mercado imobiliário formal.

Enterrando definitivamente a estratégia fundiária para uma política habitacional de larga escala, em 2014, a Procuradoria Geral do Município emitiu parecer alegando que, como até então nenhuma das ZEIS Vazios havia sido implementada, estaria a Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA) liberada a emitir alvarás de construção para elas, independentemente dos seus parâmetros e destinação. O resultado foi a perda de vários terrenos em ZEIS Vazios para a construção de apartamentos de classe média. Como se não bastasse, tampouco os 1084 vazios urbanos apropriados à provisão de habitação popular identificados pela própria Prefeitura, em 2012, foram assim utilizados, permitindo que continuassem a servir de reserva fundiária especulativa. Sem surpresa, a localização dos empreendimentos residenciais destinados aos mais pobres continuou negligenciando sua implantação em áreas urbanisticamente consolidadas.

De forma completamente alheia à questão fundiária e ao desenvolvimento urbano autêntico, os mais pobres ainda são deslocados para os espaços periurbanos, dentre os quais destacam-se os imensos residenciais, como o Cidade Jardim I e II. Lá, onde a carência de infraestrutura e serviços urbanos é sintomática, ficam novamente sujeitos a todo tipo de vulnerabilidade socioeconômica, com sérios problemas de integração à cidade.

*Marcelo Mota Capasso: Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unichristus e pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

**Sara Vieira Rosa: Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Luciano Feijão e pesquisadora do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Francisco Barbosa