“Não podemos, em nome da expansão da produção de energia eólica, sacrificar ou colocar em risco várias comunidades tradicionais e as pessoas que ocupam ancestralmente esses territórios”, alerta a assistente social Cristiane Faustino.
A ambientalista teme o avanço dos projetos de energia eólica no Ceará, estado onde nasceu. Perda de território de comunidades; incertezas sobre os impactos na biodiversidade local; transformação de atividades tradicionais, como pesca artesanal e agricultura comunitária; eliminação de espaços de convivência, de cultura e de religiosidade. Essas são algumas das preocupações da ativista.
Cris faz parte da coordenação do Instituto Terramar. A organização realiza assessoria e atividades de formação com comunidades do Ceará para pensar criticamente sobre esse assunto.
EM NOME DO CLIMA
O relatório Em Nome do Clima – Mapeamento Crítico: transição energética e financeirização da natureza apontou um aumento significativo na instalação de projetos de energia renovável no Brasil, principalmente usinas eólicas. O país ocupa o sexto lugar no ranking de capacidade instalada de energia eólica no mundo; em 2012, ocupava a 15ª posição, com cerca de 2,5 GW.
Em outubro de 2023, a capacidade instalada ultrapassou 27 GW, sendo a segunda fonte de participação na matriz elétrica. Somente com os planos de expansão do setor, a tendência é que a capacidade instalada de energia eólica na matriz elétrica nacional dobre nos próximos anos, ultrapassando 50 GW por meio de cerca de 1.590 empreendimentos.
O relatório foi realizado pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
A pesquisa foi divulgada em março e aborda os impactos da transição energética e da financeirização da natureza, respectivamente projetos de energia renovável e projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), principalmente.
HIDROGÊNIO VERDE
Os projetos visam atingir as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC) – a meta nacional voluntária de redução da emissão de gases de efeito estufa –, com metas de redução de 37% nas emissões de CO₂ até 2025 e de 43% até 2030, em relação aos níveis de 2005.
No Ceará, são mais de 30 memorandos assinados com o governo do estado e as empresas, como a alemã Linde, a holandesa Transhydrogen Alliance e as francesas Qair e Total Eren. No Rio Grande do Sul, foram assinados nove memorandos de intenção ou de realização de projetos pilotos para a produção de hidrogênio verde.
Os projetos também são planejados visando atender as metas de outros países, com a exportação do hidrogênio verde. O combustível é considerado “verde” quando oriundo de fontes tidas como renováveis, como usinas eólicas, por exemplo.
O hidrogênio verde é a aposta de países como a Alemanha para atingir metas de descarbonização da matriz energética. O país europeu necessita em torno de 20 milhões de toneladas da substância – pelo menos a metade será importada, já que o país não tem capacidade de produção deste total. Os dados estão são apontados no relatório Em Nome do Clima – Mapeamento Crítico: transição energética e financeirização da natureza.
Elisangela Soldateli Paim, coordenadora do programa energia e clima para América Latina da Fundação Rosa Luxemburgo, diz que o debate sobre transição energética foi apropriado pelo setor privado. “Atualmente, as corporações buscam se legitimar e expandir o controle sobre o debate em torno da questão climática e da própria questão energética”, diz a pesquisadora, que coordenou o eixo de transição energética do relatório.
“O Brasil entra basicamente como o fornecedor de recursos naturais em para projetos pilotos de produção de hidrogênio verde, por exemplo, num marco de aprofundar o extrativismo, o que a gente já observa em diversos outros empreendimentos”, continua Paim.
EÓLICAS: EXPANSÃO E IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS
Projetos de usinas eólicas offshore (em alto-mar) estão previstos para se instalar no estado do Ceará. Os projetos estão em processo de licenciamento junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas não há um detalhamento de qual fase ou etapa se encontram, pois são informações sigilosas. Em julho de 2023, havia 78 projetos em todo o Brasil em licenciamento, sendo 24 deles no Rio Grande do Sul e 23 no Ceará. O número de projetos avançou de forma alarmante nos últimos meses.
“Essa expansão tende a gerar uma série de consequências, como a chegada de novas empresas do setor, instalação de usinas próximas a áreas protegidas, territórios indígenas e de comunidades tradicionais”, destaca Paim.
O projeto Bons Ventos da empresa CPFL Renováveis, por exemplo, instalado desde 2008 nas proximidades da comunidade quilombola do Cumbe, no município de Aracati, litoral leste, evidencia uma série de violações de direitos e destruição dos ecossistemas.
“O acesso ao mar e toda a questão vinculada com os riscos, dos cabeamentos, de como isso impacta, o cotidiano das pessoas. Sem contar que elas precisam pedir permissão para a empresa para poder chegar até o mar”, afirma a pesquisadora.
EXTRAÇÃO DE LÍTIO TRIPLICA NO PAÍS
O avanço da mineração no Brasil para atender as demandas da chamada transição energética também ganhou destaque no relatório Em Nome do Clima – Mapeamento Crítico: transição energética e financeirização da natureza. A busca por lítio triplicou entre 2017 e 2022, segundo dados da Agência Internacional de Energia. A principal demanda é do setor energético para fabricação de equipamentos de armazenamento de energia.
O estudo mostra que uma parte importante dessa demanda está diretamente associada com os veículos elétricos, que utilizam baterias de íon-lítio.
Paim explica que, por isso, o país é estratégico para suprir a alta da busca por projetos de “energia renovável” ou “de baixo carbono”. “A produção e exportação de lítio, até 2022, era monopólio do Estado. Mas isso foi aberto para empresas e tem aumentado a especulação em torno da produção e exportação de lítio”, diz. Até agora, o caso mais avançado é na região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, mas também existem alguns outros estados com reservas, por exemplo, o Ceará.
Outro produto proveniente da mineração que terá a demanda alavancada pela transição energética é o alumínio. O Brasil é o quarto produtor de bauxita do mundo, substância da qual o metal é derivado. Os carros elétricos, por exemplo, demandam 236 kg de alumínio para cada veículo produzido.
David Williams, coordenador do Programa Justiça Climática Internacional da Fundação Rosa Luxemburgo, tem se debruçado no panorama internacional de regulações, leis e lobbys para a transição energética.
Para ele, os fóruns internacionais e conferências sobre o clima, arena de debate e de formulação legislativa para o tema, têm apresentado soluções baseadas no mercado. E o Sul global continua a ser entendido como fronteira a ser explorada, mas agora em torno de um consenso: a “salvação” da humanidade através da “descarbonização”.
“A grande decisão que a mídia cobriu na COP28 [última conferência do clima da ONU, que ocorreu em Dubai em 2023] foi a necessidade de transição dos sistemas baseados em combustíveis fósseis de maneira justa e equitativa. Foi a primeira vez que se mencionou a transição dos combustíveis fósseis”, diz. “No entanto, as negociações têm influência das empresas privadas, que enviam seus representantes para influenciar no processo”, conclui.
*Rute Pina é jornalista. Esta reportagem faz parte do projeto do programa energia e clima para América Latina da Fundação Rosa Luxemburgo.
Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.