Ceará

Coluna

Por que a urbanização de favelas não é prioridade em Fortaleza?

Vista aérea da Favela do Serviluz. - Foto: Laboratório de Estudos da Habitação da UFC
É fundamental que a política habitacional dialogue com a política urbana

Fortaleza traz a favelização como forma de moradia dos mais pobres e marca de seu desenvolvimento urbano desigual. De acordo com o Plano Local de Habitação de Interesse Social de Fortaleza, de 2012, há perto de 1,1 milhão de pessoas vivendo em 843 assentamentos urbanos precários, correspondendo a mais de 41% da população da capital cearense. Com amplo predomínio das favelas, estes assentamentos correspondem a menos de 10% do território municipal, evidenciando a densidade excessiva como mais um indicador de desigualdade na cidade.

Sem acesso pleno às redes de infraestrutura e em situação fundiária irregular, as favelas foram se expandindo pela cidade. Apesar das carências do dia a dia, sobressai o fortalecimento de suas relações sociais e resistências. Geralmente situadas em áreas ambientalmente frágeis, como faixas de praia, encostas de dunas, margens de rios, riachos e lagoas, as favelas se disseminaram por quase todos os bairros de Fortaleza. 


Chama atenção o agravamento da questão habitacional nas favelas em Fortaleza e noutros municípios da Região Metropolitana, nos últimos anos. Destaque para o adensamento e o encortiçamento nas favelas bem localizadas, o deslocamento para a periferia, as remoções de comunidades vinculadas a grandes projetos urbanos e o surgimento de novas ocupações. Importante mencionar a presença de mercado imobiliário informal nas favelas, apesar da situação fundiária irregular.

Diante desta situação, quais soluções têm sido apresentadas pelos governos?

Estudos realizados pelo Laboratório de Estudos da Habitação, da Universidade Federal do Ceará, apontam que a remoção e o reassentamento em conjuntos periféricos tem sido a principal estratégia de intervenção em projetos de urbanização de favelas. Também é possível reconhecer a seletividade nas áreas removidas, quase sempre priorizando-se aquelas situadas em bairros de interesse do setor imobiliário.

Nos anos 1970, foi elaborado o primeiro programa de desfavelamento de Fortaleza, propondo a remoção das favelas dos bairros nobres para as periferias. Em seguida, nos anos 1980, um novo programa diversificou as formas de intervenção. Todavia, sem recursos, ambos atingiram poucos resultados. No início dos anos 1990, algumas favelas situadas em áreas de interesse turístico foram urbanizadas, contando com recursos do governo federal, mais uma vez prevalecendo a remoção. Ao final dos anos 1990, as áreas de risco passaram a ser o alvo prioritário, mantendo-se a remoção e o reassentamento periférico como estratégia projetual. 

Somente nos anos 2000, é possível afirmar que Fortaleza dá sinais de construção de políticas públicas que priorizem a favela como alvo de intervenção com a urbanização e com a permanência das famílias nos setores ocupados. Aos poucos passaram a ser realizadas obras de urbanização que trouxeram infraestrutura, serviços, equipamentos sociais e moradia para os casos em que a remoção era impositiva. Porém, apenas favelas de pequeno porte foram beneficiadas. 

Grandes mudanças só ocorreram após o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – Urbanização de Assentamentos Precários pelo Governo Federal. Abriu-se, então, a possibilidade de contratação de maiores investimentos pelos governos estadual e municipal para a implantação de projetos integrados de urbanização de favelas. 

Fortaleza foi um dos municípios mais contemplados pelo programa, com a aprovação de projetos encaminhados pela Secretaria das Cidades do Ceará e pela Fundação para o Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor). Além de contratos para finalizar obras iniciadas em áreas de risco, a capital cearense foi contemplada com projetos de urbanização de grandes favelas e com programas de urbanização de favelas associadas a obras de macrodrenagem e intervenções em áreas de risco nas bacias dos rios Maranguapinho e Cocó. Dados da Caixa Econômica Federal indicam que cerca de R$ 1,2 bilhão foi contratado para urbanização de favelas, beneficiando mais de 50 mil famílias de 111 comunidades, com obras de infraestrutura e mais de 18 mil habitações para reassentamento.

Um olhar atento para estas urbanizações revela que as estratégias de intervenção passaram a se diversificar, possibilitando a realocação de famílias nas proximidades em alguns casos, a implantação de infraestruturas, serviços e equipamentos sociais, assim como a diversificação dos projetos habitacionais.

Contudo, são muitos os problemas que impediram que os objetivos desta política fossem atingidos. Em vários casos, as demarcações das áreas a serem urbanizadas restritas aos setores em situação de risco, implicou na urbanização parcial das favelas sem que todo o assentamento tivesse suas condições de vida melhoradas. Em outras situações, priorizou-se as bordas da favela, em detrimento do miolo, prevalecendo as obras de mobilidade, pavimentação e de espaços públicos lindeiros sem alterar a parte interna da favela. 

Conversas com agentes envolvidos apontaram a descontinuidade das obras em função de problemas contratuais como um grande entrave. Problemas de gerenciamento devido ao tamanho das intervenções também foram apontados. Por vezes, etapas iniciadas tiveram que ser refeitas, levando à necessidade de adição de novos recursos e aumento do tempo para concluir os trabalhos.

A ausência de um maior diálogo entre as instituições e os moradores, sem quaisquer esclarecimentos prestados em relação às estratégias de intervenção, levaram a que a adesão das comunidades fosse mínima, reduzindo o alcance dos benefícios e comprometendo o seu andamento. Da mesma forma, os projetos de trabalho social associados à baixa participação das famílias atingidas no processo de urbanização pouco contribuíram com a melhoria das condições de vida das comunidades.

Chama atenção a dissociação das políticas urbana e habitacional. O reconhecimento de favelas como zonas especiais de interesse social em nada contribuiu para a urbanização destas áreas. Os planos integrados de regularização fundiária das zonas consideradas prioritárias até hoje não foram implementados. Além disso, nas favelas em que houve remoção, os reassentamentos não ocorreram em zonas especiais de interesse social de vazios, que permanecem desocupadas. 

Nos últimos anos, diante da ausência de recursos para novas intervenções, as políticas públicas para assentamentos precários se reduziram a projetos específicos que desconsideram a necessidade de urbanização integral. Mais adequada às necessidades desses territórios, a urbanização integral deve englobar ordenamento territorial, infraestrutura urbana, equipamentos, melhoria das condições de moradia, regularização fundiária, geração de trabalho e renda, fortalecimento comunitário, dentre outros.

Por um lado, tem ocorrido a regularização fundiária através da Lei Federal 13.645 de 2017 (REURB), que permite que as obras de urbanização sejam realizadas em um momento posterior. Por outro, observa-se a execução de obras de infraestrutura em comunidades, correspondendo a obras de pavimentação e drenagem, sem que ocorra a urbanização em sua totalidade. 

O que fazer para melhorar as intervenções em favelas?

Diante das possibilidades de novas intervenções e a partir dos equívocos recentes cometidos nas políticas públicas habitacionais para favelas, faz-se necessário apontar algumas recomendações.

É fundamental que a política habitacional dialogue com a política urbana e que sejam formuladas políticas públicas de longo prazo voltadas para a urbanização integral de favelas, com critérios que definam aquelas a serem priorizadas. Da mesma forma que se garanta a implementação de instrumentos urbanísticos que promovam a democratização do acesso à terra urbanizada, evitando o deslocamento de famílias para periferias desassistidas.

Para a formulação dos projetos de urbanização, seria da maior importância que fossem previamente realizados levantamentos planialtimétricos cadastrais com a identificação de todas as famílias do assentamento a ser urbanizado, da mesma forma que fosse elaborado um quadro de diretrizes de forma participativa que contivesse os anseios da população.

Cada vez mais, a inclusão de medidas que resolvam os problemas entre as favelas e o entorno imediato ganha importância. Afinal, após a urbanização permanecem problemas de conexão com redes de infraestrutura, de drenagem urbana, de descontinuidade viária, dentre outros. A elaboração de um plano urbanístico que promova maior integração social entre a comunidade e a cidade formal também pode combater a visão estigmatizante das vizinhanças em relação às comunidades.

Ademais, que a urbanização integral de uma favela considere o assentamento em sua totalidade e que todas as questões sejam enfrentadas através de um mesmo processo de projeto. Para além das obras de infraestrutura e serviços urbanos, do ordenamento viário e da construção de novas moradias, que sejam verdadeiramente implementadas, que promovam a geração de trabalho e renda, que garantam a segurança fundiária, que fortaleçam as relações comunitárias e a organização social e política das favelas urbanizadas. Por fim, que seja incluída nos conteúdos dos projetos, a realização de melhorias habitacionais com a devida assessoria técnica, respeitando os anseios da população e suas peculiaridades. 

*Renato Pequeno, Professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará.

**Vinicius Saraiva Barretto, Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAUD – UFC, pesquisador do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará e assessor técnico do Quintau Coletivo e Taramela ATAC.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Francisco Barbosa