A propriedade é uma realidade paralela? O mundo atual é chamado para um novo desafio: cuidar do planeta terra. A segunda década deste século se inicia com uma crise sanitária: a pandemia de covid-19 obrigou pautar na política internacional o debate sobre os riscos que o modelo de desenvolvimento capitalista oferece. E é neste quadro que surge a necessidade de trazer para a compreensão do instituto da propriedade, o cuidado com o meio ambiente e a superação da crise climática.
Se no passado a propriedade inspirou uma classe revolucionária, seus limites a transformam na coveira do mundo. Um dos legados da burguesia foi a invenção do sujeito e da subjetividade como conhecemos hoje, ou seja, pessoas como unidades próprias almejando a liberdade para decidir sobre si. Mas este sonho burguês estava restrito aos proprietários. Sim, para o liberalismo, só era livre e sujeito detentor de direitos, aquele que fosse patrão, e nunca o trabalhador. Esta concepção entende que é a propriedade que constrói o homem, e uso da palavra homem, destacando o sexo masculino, é proposital, pois às mulheres não era dado o direito de serem proprietárias e de terem liberdade. Portanto, é por isso, que a propriedade é vista como um dos mais importantes direitos para o Estado burguês.
Com o advento das crises econômicas do século XX que deflagraram miséria e desestruturação social, das revoluções proletárias que reconfiguraram a geopolítica mundial, e por medo de uma quebra definitiva do sistema, houve uma redefinição do instituto da propriedade. E neste novo momento do Capitalismo, que se incorporou a ideia de responsabilidade social da propriedade nos textos jurídicos e nas pautas políticas. Apesar deste valor estar embutido na teoria de John Locke, o grande ideário do liberalismo burguês, ele foi devidamente subalternizado pelas leis e valores do Mercado, principalmente nos países periféricos, que não fizeram reforma agrária, concentraram a terra nas mãos do velho senhoril, expulsaram a classe trabalhadora e estagnaram a economia com a produção de commodities em solos envenenados.
Com esta evolução da concepção de propriedade da terra, tivemos mais espaço para conquistar a antiga bandeira de luta do campesinato, que é a de “Dar a terra para quem nela trabalha.” Com isso, criaram-se novas relações de trabalho e de cuidados com o solo, como é o caso das produções resultantes da agricultura familiar e dos movimentos sociais do campo, tais como: MST, MPA, MAB, MMC e CPT. A exemplo das históricas experiências coletivas, como foi o caso da Comunidade Caldeirão, no Crato-CE, e que foi brutalmente massacrada pela Polícia e pelo Exército, as práticas solidárias da gente do campo é a prova de que a responsabilidade social é importante para uma reorganização econômica menos desigual da sociedade.
Além disso, a gente camponesa têm pautado permanentemente a necessidade de cuidados com o solo e com a biodiversidade, pois a agricultura familiar e o roçado do pequeno agricultor, traz uma obrigatória diversificação de cultivo que melhora física, biológica e quimicamente o solo. Diferente do agronegócio que exaure e polui a terra e o que está ao seu redor. O desmatamento de florestas para o cultivo de uma única espécie gera um desequilíbrio que se estende a um raio muito superior ao do tamanho demarcado daquele latifúndio. Até porque, sabemos que para além do prejuízo biológico da monocultura, temos outro grande inimigo, o agrotóxico.
O uso desenfreado de pesticidas, o desmatamento de florestas, o crescimento desordenado de cidades e a produção de poluentes têm produzido efeitos graves e de pouca ou nenhuma contenção por parte da sociedade e de governos. As tragédias das águas ou dos ventos, poderiam ser minimizadas, mas para isso precisaremos acrescentar a perspectiva de cuidados ambientais ao instituto da propriedade, além da defesa radical das naturezas coletivas, como é o caso das florestas, matas, rios, aquíferos e mares.
*Advogada, pertence à Executiva Nacional da ABDJ - Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e atriz.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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Edição: Camila Garcia