Há quase um mês, o espaço conhecido como Biblioteca Comunitária Okupação já não funciona com a mesma vivacidade que se via em outros momentos desde sua criação em 2017. Isso porque, durante o mês de março, a biblioteca que funciona no bairro Antônio Bezerra, em Fortaleza, esteve na mira da empresa Ambiental Ceará, e teve parte de sua estrutura física comprometida em virtude de um serviço público.
Tudo começou entre os dias 17 e 18 de março, quando a equipe de responsabilidade social da empresa Ambiental Ceará - empreendimento da Aegea Saneamento, que possui parceria público-privada com a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), e é responsável pelos serviços de coleta, afastamento e tratamento de esgoto em 24 municípios cearenses - comunicou aos responsáveis da biblioteca comunitária a necessidade de saída do local devido aos riscos oferecidos por uma obra pública de substituição de 132 metros de rede de esgoto, realizada atrás do espaço da biblioteca.
“Eles entraram em contato numa terça-feira e pediram para a gente sair no dia seguinte, na quarta-feira. Aí eu disse que não tinha condições, porque eles tinham que garantir nossa alimentação, hospedagem e transporte. Inclusive, eu solicitei um engenheiro para realização de uma vistoria do nosso imóvel naquele momento para depois que a obra passar eles ressarcirem a gente pelo que foi danificado”, afirma o poeta, educador e coordenador da Biblioteca Comunitária Okupação, Baticum Proletário, que revela a urgência no esvaziamento do espaço que foi solicitado pela empresa.
Apesar da demanda colocada pelo coordenador do espaço, a equipe de responsabilidade social da empresa não atendeu a solicitação. Com a negativa de entrega dos documentos que garantiriam a Baticum a certeza de reparação dos danos causados pela empresa ao seu imóvel, o poeta resistiu aos pedidos de esvaziamento do espaço, e informou para a equipe que sairia somente após o recebimento dos documentos. Somente uma semana depois, por volta do dia 25 de março, a equipe de responsabilidade social retornou à comunidade, atendendo o pedido da coordenação da biblioteca.
Procurado pelo Brasil de Fato Ceará sobre as condições de estadia prestadas pela empresa, Baticum afirma que está alojado no Hotel Íbis há quase um mês, desde o início das obras. Ele destaca que apesar do serviço de estadia e alimentação garantidos pela empresa, existem diversas falhas no processo de operação da construção. “Essa obra é muito mal planejada, eles destruíram o nosso jardim, o espaço da biblioteca, a calçada, o piso de uma praça pequena em que a gente construiu, derrubaram as mais de quatro árvores que tinham próximas e que permitiam uma sombra e boa ventilação no local”, aponta.
A cantora e musicista, Michelle Freitas, destaca também o processo de reforma que o espaço havia passado há pouco tempo, construído pelas mãos dos próprios moradores da comunidade que contribuem com a realização das atividades na biblioteca. “Recentemente tínhamos reunido pessoas para pintar e para avivar o local, para ficar lindo. Então estava bem colorido, estava bem participativo, e ver tudo destruído, e nosso serviço, nossa ação, ter ido por água abaixo é completamente desesperador e frustrante. É decepcionante!”, aponta.
A execução da obra pública, no entanto, além de trazer impactos físicos para o espaço de construção coletiva de saberes, trouxe também impacto direto na realização de projetos desenvolvidos no espaço. Michelle afirma que frequentava a biblioteca semanalmente, e que sempre ia acompanhada dos filhos, incentivando a leitura dos jovens e também para realizar doações de livros para a biblioteca. Ela destaca também que sempre participou de forma ativa dos saraus construídos através da iniciativa comunitária, mas que foi impossibilitada pela depredação do local.
Carlos Yuri, cantor, compositor e fazedor de rap, frequenta o espaço da biblioteca que atua também como polo cultural com certa periodicidade. “Sempre quando estou de folga vou à biblioteca, e na maioria das vezes estão realizando os saraus. Então, participo mais com essas atividades em relação à produção de poesia, música e letra, apesar de já ter assistido outras apresentações”. Quando procurado pelo Brasil de Fato Ceará, o artista também aponta que a obra tem sido executada de forma irresponsável, impossibilitando o funcionamento normal do espaço para fins educativos e culturais.
O coordenador da iniciativa aponta ainda outro impacto. Acontece que a biblioteca vinha organizando atividades da Temporada de Arte Cearense, executada de janeiro a maio deste ano, e que agora, com a execução do serviço de esgoto que tem causado diversos danos ao local, o planejamento de ações tem se tornado cada vez mais difícil. “Nós tivemos diversas atividades prejudicadas que aconteciam no local, como o laboratório de vivências para jovens e adultos que, esses dias tivemos que fazer na calçada e na rua. Além disso, perdemos um grande público também, as pessoas não conseguem passar na rua que está fechada e destruída por conta da obra. Nossos saraus que eram realizados no espaço da biblioteca foram comprometidos, e o nosso público caiu drasticamente por conta dessa situação”, ressalta.
O fazedor de rap também salienta que a realização das atividades tem acontecido na rua, e garante que para a segurança dos envolvidos nos projetos, tem-se utilizado um local bem reservado, ainda que na rua, para que as atividades aconteçam de forma segura, sem pôr em risco a vida de ninguém. Apesar da insatisfação com a falta de comprometimento da empresa Ambiental Ceará em reparar os danos do local com a mesma urgência que teve em esvaziar o lugar, Yuri enfatiza que o projeto não parou, e agradece ao coordenador Baticum pelo comprometimento em manter a realização das atividades de promoção de saberes e cultura. “Poucos têm a atitude que esse cara tem, merece muito mais atenção de todos os órgãos responsáveis pela cultura. Alguém que deve ser valorizado”, encerra.
A musicista cearense também destaca o lugar de afetividade que a biblioteca representa para os moradores do arredores. “Um dos espaços danificados pela obra era chamado de Pracinha do Amor, porque a gente podia ir lá a qualquer hora para sentar, reunir pessoas e conversar, e isso faz muita, mais muita falta mesmo”. Por fim, ela ressalta que apesar das empresas Cagece e Ambiental Ceará confirmarem a reconstrução do local, ela não será tão satisfatória. “Todo o espaço foi feito com nossas próprias mãos, ou seja, tinha aquele valor afetivo e valor de passar e dizer ‘eu ajudei ali, aquela parede pintada de cor X ou Y, foi eu que pintei’. Meu filho de quatro anos pintou um pedaço da parede toda em amarelo, que foi completamente destruído, então isso aí não volta. É triste, realmente é muito triste”, completa.
Em nota enviada ao Brasil de Fato Ceará, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) informou através da empresa Ambiental Ceará que a conclusão do serviço público está previsto para a primeira quinzena de maio, e ressaltou ainda que a reparação aos danos causados ao espaço interativo será realizado após finalização da obra.
Veja a nota na íntegra:
A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) informa que, por meio da Ambiental Ceará, está realizando a substituição de 132 metros de rede de esgoto, no bairro Antônio Bezerra. A conclusão do serviço está prevista para o dia 15 de maio, assim como os reparos necessários no entorno da obra. As chuvas registradas neste período podem interferir na execução dos serviços.
As equipes de responsabilidade social que atuam durante a execução da obra alinharam a mudança da Biblioteca Okupação para espaços provisórios, localizados na rua Salgado Filho, nos números 1120 e 961. O responsável pelo espaço cultural está hospedado em hotel custeado pela empresa parceira e sendo beneficiado pelo transporte até os novos espaços em que a biblioteca está realizando as atividades.
Assim que o serviço for finalizado, a biblioteca poderá retornar ao local original e o trânsito será liberado. Após a data prevista informada, o cronograma da obra será continuado com a recomposição de pavimento asfáltico. O local encontra-se devidamente sinalizado, garantindo a segurança de quem transita pela região.
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Edição: Camila Garcia