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Neoliberalismo, mineração e gestão das águas no brasil – parte 3

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Em fevereiro de 2019, as águas do Rio Poti foram contaminadas pelos rejeitos da mineração de ferro da Globest, em Quiterianópolis/CE. - Erivan Silva
O SNIS aponta que, em 2022, 13 milhões de nordestinos não tinham serviços de abastecimento de água.

No primeiro e no segundo texto da série apresentamos como o discurso da escassez hegemônica e globalmente costurado durante a década de 1990 acaba por constituir princípios globais que forjam fundamentos neoliberais das políticas de gestão das águas no Brasil. Também mostramos que há uma relação direta entre a Lei Kandir, a privatização da Vale e a Política Nacional de Recursos Hídricos, entre 1996-97, e que são parte estruturante para o processo de privatização do modelo mineral brasileiro. Os princípios que definem a água como recurso finito e o fundamento para inibir o desperdício que passa por atribuir valor econômico constituem parte de uma falaciosa narrativa que acaba por retirar do Estado a centralidade dessa gestão, fazendo com que ela seja centralizada pelo capital a partir da captura pelos conselhos estaduais e federais e pelos Comitês de Bacia Hidrográfica.

Se até aqui o objetivo foi apontar a dimensão geopolítica do processo de mercantilização das águas e as brechas de uma política neoliberal que acabam por favorecer interesses privados, concretamente destinando bilhões de litros por hora para a mineração, nesta terceira parte, mostramos os efeitos expressos na realidade e no cotidiano da classe trabalhadora com foco no Nordeste. São milhões de pessoas sem acesso à água, principalmente na Amazônia e no Nordeste do país, enquanto os volumes consumidos pela mineração poderiam abastecer praticamente todo esse universo de pessoas. Nesse sentido, quatro elementos introdutórios devem ser levados em consideração, para compreendermos a relação entre o Problema Mineral Nordestino como parte da razão da desigualdade estrutural de acesso à água na região.

31 milhões de pessoas sem água no Brasil: Amazônia e Nordeste sofrem mais

O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) aponta que, em 2022, havia cerca de 31 milhões de brasileiros sem acesso à água no Brasil. A maior quantidade está localizada no Norte e Nordeste. No Norte do país há cerca de 6,5 milhões de amazônidas sem qualquer serviço de abastecimento de água, o que corresponde a 37,5% do total da população. Em números absolutos, a situação no Nordeste é ainda pior, são mais de 13 milhões de nordestinos e nordestinas sem serviços de abastecimento de água em suas casas, o equivalente a mais de 24% da população nordestina.

Segundo o Cadastro Nacional de Recursos Hídricos (CNARH), o capital mineral consome na Amazônia 105,8 milhões e na região nordestina 58 milhões de litros de água por hora. Para termos uma ideia do tamanho da injustiça hídrica deste modelo mineral, uma pessoa nordestina consome cerca de 121 litros de água por dia. Significa dizer que o capital mineral consome uma quantidade de água equivalente a 11,5 milhões de nordestinos, quase a totalidade daqueles/as que não têm acesso à água na região.

Perdas físicas nos sistemas de distribuição de água potável: a história se repete

Não fosse suficiente o grave cenário da ausência significativa de cobertura dos serviços de abastecimento, há sérios problemas nas estruturas de distribuição de água potável acarretando alto nível dos Índices de Perdas Físicas na Distribuição de Água nas duas regiões. Este índice aponta a quantidade de água que é perdida entre a estação de tratamento de água e os domicílios ligados à rede. Ou seja, água em quantidade e qualidade própria para o consumo. O Norte e o Nordeste do país apresentam as maiores perdas, superiores à média nacional. De cada 100 litros 46,9 são desperdiçados no Norte e 46,7 no Nordeste, praticamente metade do que é ofertado não chega aos domicílios. As demais regiões apresentam índice menor do que a média nacional, que é de 37,8%.

Nordeste apresenta total de outorgas de água para o setor menor do que total de lavras concedidas

O terceiro elemento diz respeito ao número bastante questionável das outorgas estaduais e federais para a mineração nestas duas regiões. Segundo dados recolhidos do Cadastro Nacional de Recursos Hídricos (CNARH) e analisados em 2022, existem apenas 354 outorgas de água para a mineração no Nordeste brasileiro, considerando aquelas que estão autorizadas, outorgadas e de uso insignificante. O Ceará é o estado com maior número de outorgas na região, com 69, enquanto a Bahia possui apenas 68. Concreta e historicamente a mineração nos dois estados se encontram em estágios distintos, ainda que ambos predominem o avanço da fronteira do capital mineral na região.

Na Bahia, mais de 244 municípios apresentam atividades extrativas. Em 2021, o setor apresentou um crescimento de 7% e não por acaso registrou conflito mineral em 90 municípios entre 2021 e 2022. A Bahia é o terceiro estado mais minerado no país e tem registrados 665 projetos com “Concessão de Lavra”, além de 56 “Concessões de Lavra Garimpeira”, em 2023. Como pode, então, um estado que apresenta 721 concessões de lavra ter apenas 68 outorgas destinadas à mineração? Isso é parte de um problema estrutural da Política Neoliberal de Recursos Hídricos que, por essa e outras razões, tem se mostrado ineficaz em conduzir a gestão de águas no país (ou muito eficaz para garantir acumulação de capital para o setor primário). Se existem 354 outorgas de água no Nordeste para o setor e apenas na Bahia são 721 concessões de lavras, existem dois cenários possíveis: Há um conjunto de ilegalidades do setor que operam sem requerer outorga de uso da água na região e, provavelmente, no resto do país; Do contrário, todas as operações têm outorga de uso da água, mas esses dados não foram enviados ao CNARH;

De uma forma ou de outra, fato é que há um enorme vazio de informações importantes para fundamentar uma gestão comprometida com os próprios fundamentos da PNRH. Se o número de outorgas é significativamente inferior ao número de concessões de lavras há um subdimensionamento grave do total de água consumida pelo capital mineral e, consequentemente, também do valor tarifário pago por ele.

Conflitos pela água ligados a mineração no nordeste provocam destruição, poluição, diminuição ou impedimento de acesso à água

Segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sistematizados anualmente no Caderno de Conflitos no Campo, entre 2013 e 2022, ocorreram 1.076 conflitos por água envolvendo a mineração no Brasil. Mais da metade deles estão em Minas Gerais (551), parte significativa ocasionada pelos crimes cometidos pela Vale, BHP Billiton e Samarco, em Mariana, e Vale, em Brumadinho.

O Nordeste brasileiro apresenta os mais complexos e graves índices de desigualdade estrutural de acesso à água do país. O total de pessoas sem acesso à água é praticamente o mesmo se compararmos a partir do volume que é destinado à mineração na região. Ainda assim, a constatação do subdimensionamento do número de outorgas, portanto do quanto de água que a mineração consome tornam o quadro ainda pior.

Entre 2013 e 2022 ocorreram 279 conflitos por água no Nordeste provocados pela mineração, dos quais 143 resultaram em violências relacionadas a contaminação, diminuição ou impedimento de acesso a água. Razões que apontam para a incompatibilidade da coexistência de um setor muito demandante e contaminante de água em uma região que historicamente convive com o semi-árido e enfrenta a seca não como fenômeno climático, mas como instrumento de poder.

Estes quatro elementos centrais deflagram problemas estruturais da PNRH em razão da realidade concreta de apresentar as contradições entre o que ela fundamenta e o que ela pratica. No último texto da série faremos um esforço de apontar problemas estruturais que estão na gênese dos tentáculos do neoliberalismo e sua acumulação de capital por meio da espoliação das águas no Brasil.

*Pedro D’Andrea, geógrafo e educador popular, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Francisco Barbosa