Logo no início de janeiro deste ano as redes sociais foram tomadas com a notícia da demissão da primeira mulher transgênero professora do Instituto Federal do Ceará (IFCE), Êmy Virgínia Oliveira da Costa. A professora denuncia ser vítima de transfobia durante o Processo Administrativo Disciplinar que resultou em sua demissão da Instituição. De lá para cá muitas ações e movimentações vem acontecendo na tentativa de reverter a decisão. Uma das ações mais recentes foi divulgada no perfil no Instagram, O IFCE, que informou que a gestão da instituição se reuniu com representantes do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (SINASEFE).
Na oportunidade, de acordo informações divulgadas no perfil, “foram elucidados pontos relacionados ao Processo Administrativo Disciplinar (PAD) que culminou na demissão de uma professora da instituição por inassiduidade habitual”. A demissão da professora foi efetivada no dia 22 de janeiro, após publicação da Portaria nº292/GABR/REITORIA/IFCE, de 19 de janeiro de 2024, no Diário Oficial da União. “Os presentes à reunião foram cientificados pelos gestores do IFCE sobre a possibilidade de pedido de reconsideração pela via administrativa, como é de praxe em processos administrativos disciplinares finalizados”, continua o texto da postagem.
O Brasil de Fato conversou com a professora Êmy para saber mais o caso. Confira.
Quem é Êmy Virgínia?
Êmy Virgínia é professora de linguagem, não no sentido tradicional, que associa esse professor a ensino da norma culta escrita (que é diferente da norma culta falada). Para mim, ser “professora de linguagem” é, sobretudo, compreender os fenômenos semióticos que encontramos por trás de toda fala, toda frase, todo texto. Onde há linguagem há processos psicológicos e socioculturais acontecendo através dela. No IFCE, atuo principalmente no Curso de Licenciatura em Letras, buscando formar professores capazes de levar os estudantes a pensar sobre fenômenos da linguagem, e não apenas memorizar regras de escrita culta.
Para você, o que representa todo o apoio que você vem recebendo de alunos, professores e sindicatos?
Quando eu recebi a notificação de demissão por e-mail eu fiquei absolutamente em choque, sem conseguir parar de chorar por horas. A primeira reação que tive que fazer foi buscar atendimento com a psiquiatra que me acompanha há muito tempo. Eu faço tratamento contra a depressão e a disforia de gênero há um tempo. Eu tomo medicação diária desde 2018 e antes disso, eu já havia feito acompanhamentos temporários e tomado medicação por alguns meses, mas interrompia, porque a gente resiste a aceitar a depressão como doença. A gente fica achando, por muito tempo, que a depressão e a disforia (a não-identificação com as marcas de gênero do nosso corpo) é culpa nossa.
A notícia me jogou num abismo profundo e a primeira luz que enxerguei, quando o choro diminuiu um pouco, foi a diretoria do Sindicato. A partir da mobilização do Sindicato, alunos e ex-alunos, colegas de trabalho atuais e antigos foram se somando. Nesses momentos, apesar da escuridão que se instalou, descobri que, por onde passei, deixei resultados de um bom trabalho e pessoas que reconheciam minha dedicação, ao longo de mais de dezoito anos de serviço público (8 anos no IFCE, 6 anos na rede estadual e 4 anos como servidora na Prefeitura Municipal de Tabuleiro do Norte, entre 2006 e 2009).
Ex-alunos de Tianguá se mobilizaram nas redes e colegas com quem trabalhei lá também se engajaram. Meus colegas atuais, do Campus Baturité, têm postado vídeos nas redes, também os colegas dos anos em que fui professora de carreira de escolas estaduais, também colegas com quem estudei, seja na Graduação, na Especialização, no Mestrado ou no Doutorado. São eles que têm me dado energia, porque esse é o momento mais difícil que já vivi, é algo que me faz desacreditar da própria vida. Eu não sinto, nem em uma autocrítica mais cruel, que eu mereça passar por isso. Primeiro porque eu não causei nenhum prejuízo aos meus alunos, não há um aluno que tenha dito isso no processo. Segundo, porque eu passei no concurso do IFCE após uma trajetória de muita luta, eu fiz Graduação, Especialização e Mestrado trabalhando, trabalhava durante o dia, estudava à noite e madrugada adentro. Minha mãe, na minha infância, foi beneficiária do Bolsa Escola e, depois, do Bolsa Família. Meu último ano de ensino médio, em 2005, eu cursei à noite, porque durante o dia eu trabalhava numa pequena loja de xerox, em Tabuleiro do Norte. Terceiro, porque eu passei numa seleção de Doutorado em uma Universidade que está entre as 50 melhores da América Latina: Universidad de la República, única universidade pública do Uruguai. Eu viajei três vezes para lá com minhas economias financeiras, sem dinheiro público nenhum, embora quem ganhe com o doutoramento de um professor seja a própria instituição.
Como está o andamento do caso?
No âmbito do IFCE, os reitores substitutos, Marcel Ribeiro e Ana Uchôa já emitiram despacho pela minha demissão e pela publicação da portaria de demissão no Diário Oficial, que é o ato final de tudo isso. Isso não tem sido suficiente para barrar a mobilização dos estudantes, colegas e do Sindicato, pois a luta está para além de mim, meu caso se junta ao da professora negra Jacyara Paiva, da Universidade Federal do Espírito Santos.
Meu caso e o dela revelam que, quando se trata de professores pertencentes a grupos sociais marginalizados (ela é uma pessoa negra e eu uma pessoa trans), a lei é sempre aplicada com a maior letalidade e desproporcionalidade possíveis. A interpretação legal é sempre a que condene à morte, afinal, excluir-nos da instituição é uma forma simbólica de morte.
Na nota divulgada pelo IFCE eles informam que “Saliente-se, ainda, que o IFCE conta com uma política de capacitação que possibilita aos servidores se afastarem para cursar pós-graduação. Para isso, existem instrumentos institucionais, com base na legislação vigente, instituídos pela Resolução do Conselho Superior nº 3/2018 (atualizada pela Resolução nº 37/2021)”, e no perfil do Instagram @professoraemyfica você explica toda a sua movimentação para ir às aulas do seu Doutorado e, mesmo assim, você foi demitida. Para você, qual a motivação dessa demissão?
Eu estava impedida pelo IFCE de participar dos editais de afastamento integral para cursar Mestrado ou Doutorado. Estava impedida porque a dita Resolução que eles mencionam na nota (Resolução 3/2018, atualizada pela resolução 37/2021), no Art. 56°, dizia que “os servidores classificados em edital de remoção só poderão solicitar afastamento após a portaria de remoção e no Campus de destino”, eu estava “classificada em edital de remoção” desde fevereiro de 2019. O que significa isso? Eu estava transferida/removida de Tianguá para Baturité e deveria esperar chegar um professor substituto no Campus Tianguá para que, depois disso, eu fosse autorizada a ir pra Baturité (“campus de destino”). A chegada desse professor substituto não aconteceu durante quatro anos.
Durante quatro anos eu fiquei como “classificada em edital de remoção” e impedida de participar do edital de afastamento para Mestrado e Doutorado. Eu não tinha culpa nenhuma se eles não contratavam ou faziam concurso para um professor ficar no meu lugar, para que eu pudesse ir para meu “Campus de destino” (Baturité) e participar do edital de afastamento de lá. E veja que eu saí de Tianguá em 2022 porque entrei na Justiça (e ganhei), alegando que eu estava “classificada em edital de remoção” desde 2019 e que há três anos eu aguardava que eles providenciassem um professor para ficar no meu lugar.
A assessoria jurídica do SINDSIFCE divulgou uma nota técnico-jurídica sobre as ilegalidades do processo administrativo disciplinar que resultou na sua demissão. Você acredita que essa decisão pode ser revertida?
A Assessoria Jurídica do Sindicato deverá entrar com ação judicial. A principal irregularidade do processo é a forma como a Comissão Processante e o Parecer da AGU do IFCE chegaram a 79 dias de faltas, numa contagem que inclui sábados, domingos e feriados, demonstrando um esforço perceptível deles para chegar a 60 dias ou mais, única possibilidade que eles acharam de gerar minha demissão, pois o fato de eu ter feito as antecipações de aula sem protocolar os pedidos, além de não ser algo incomum no âmbito do IFCE, nunca geraria demissão, já que nunca respondi a nenhum processo nem sindicância, e tenho dezoito anos de serviço público, sem nenhuma advertência.
Além disso, eles não apresentam os prejuízos decorrentes dessas faltas que me são atribuídas. Eles não conseguem apontar os prejuízos porque as aulas foram antecipadas e estão registradas no Sistema de Registro de Aulas do IFCE (QAcadêmico), o que é um paradoxo, pois se eles alegam que houve falta, então as aulas deveriam ter sido excluídas do QAcadêmico. No processo, a comissão processante não identificou nenhum aluno que diga que eu deixei de ministrar a carga horária total das disciplinas. Todos os depoimentos de aluno são a meu favor. Estamos todos confiantes que isso será revertido na Justiça.
Nas redes sociais está tendo campanha e baixo assinado em seu apoio. Como faz para participar desses apoios?
Quem tem organizado toda a mobilização das redes são os alunos, sob a liderança da jornalista Julyta. Eu não estou em condições de acompanhar, porque ainda estou me adaptando à medicação mais forte que estou tomando para conseguir dormir, de modo que eu ainda estou raciocinando lentamente. Eu sei que a página @professoraemyfica tem sido o centro de toda a mobilização.
Você gostaria de deixar alguma mensagem para as pessoas que lhe apoiam?
As pessoas que me apoiam percebem que as coisas que fiz (antecipar aulas para poder fazer um curso de pós-graduação) não seriam encaradas como algo assim tão grave, caso se tratasse de alguém que não pertencesse a um grupo marginalizado. Os estudantes sabem que a antecipação, ou reposição de aula sem necessidade de autorização da Coordenação de Curso acontece com frequência no âmbito acadêmico e que eu sou a primeira a ser punida por causa disso. A pergunta que grita é: por que a primeira professora a ser punida por causa disso é justamente a única professora trans do IFCE?
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Edição: Camila Garcia