Por Julieta, Cicinho, Moa e tantas outras e outros seguiremos fazendo arte e resistindo.
Esses dias de início de ano tenho pensado muito em uma expressão que aprendi com mainha: "pra morrer só basta tá vivo". É uma expressão que diz sobre pessoas que partem da vida por motivos naturais e da pandemia pra cá o tanto de trabalhadores da cultura que se foram não é brincadeira, fosse por não terem tido mais renda, fosse pela doença muitas vezes adquirida na obrigatoriedade de seguir trabalhando mesmo com as restrições sanitárias. É bom não esquecermos que muitos dos que perdemos para a covid poderiam estar ainda entre nós se o fascismo bolsonarista não estivesse no comando do país na época.
Mas o que tem me incomodado de verdade são as inúmeras vidas de artistas perdidas pras violências que tem dominado nosso dia a dia. Falo especificamente dos artistas, não porque sejam uma vida mais especial do que qualquer outra vida, pois acredito que nada justifica tirar a vida de ninguém, mas falo dessa particularidade porque me afeta diretamente como trabalhador cultural. Ver que pessoas que dedicam suas vidas a produzir a transmissão da humanidade por meio da arte são assassinadas brutalmente me assusta. Será se na próxima vez que eu for apresentar uma de minhas performances urbanas nas ruas desse brasilzão não serei alvejado por uma dessas balas do ódio? E pensem, se eu que sou um homem dentro dos padrões socialmente aceitos – branco e cis – imaginem o que não vivem as pessoas que fogem, por menor que sejam, desses padrões impostos pelo sistema!
Não faz muito tempo, no início de dezembro passado, durante a 4ª Conferência Estadual de Cultura, a brincante e multiartista Jéssika Kariri fez uma fala muito potente e necessária refletindo sobre a condição em que vivem nossos Mestres e Mestras da cultura, nossos Tesouros Vivos que tem obras circulando nos principais espaços da arte pelo mundo, mas não tem os seus direitos básicos de moradia, alimentação, saúde e segurança garantidos. Vide o caso do Mestre Cicinho que foi assassinado no meio da madrugada na porta de sua casa, enquanto preparava o trono do seu quilombo para brincar o dia de Reis. Ou Mestre Moa do Katendê que foi assassinado por um bolsonarista que covardemente lhe alvejou pelas costas, após uma discussão política em 2018 pouco depois do primeiro turno.
Outro caso brutal que tem nos feito pensar é o da Palhaça Miss Jujuba, a artista Julieta Hérnandez, que foi assassinada no interior do Amazonas, quando voltava de bicicleta para Venezuela, seu país natal, para encontrar a família durante as festividades de final de ano. Sofreu em vida inúmeras violências por ser mulher, por ser migrante venezuelana, por ser ciclista viajante solo, por ser artista. Sofreu e resistiu todas essas violências até que uma dessas agressões ela não conseguiu resistir.
Mataram, ao tirarem a vida de Julieta, Cicinho e Moa, não só a pessoa de Julieta, Cicinho, Moa… Mataram um tanto da vida de todos nós, mataram um bocado do sorriso e da alegria, mataram um pedaço de nossa humanidade, destruíram de forma irreversível uma incalculável parte da arte no mundo. Mas por Julieta, Cicinho, Moa e tantas outras e outros seguiremos fazendo arte e resistindo as violências desse sistema que adoece e extermina.
*Lívio Pereira é trabalhador da cultura e militante social, escreve para o BdF há mais de um ano.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. O título foi retirado de um dos versos da canção que encerra o espetáculo.
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Edição: Camila Garcia