Ceará

Coluna

"Menina, sai pro terreiro e vem brincar"

Imagem de perfil do Colunistaesd
Apresentação do espetáculo porElas no bairro Batateira em Crato, sobre a violência sofrida por mulheres em seu dia a dia. - Brasil de Fato Ceará
Crítica do espetáculo porElas do grupo Ocupações Artísticas da Cidade lançado em agosto.

Ainda refletindo sobre o padrão de masculinidade hegemônica, a misoginia e o machismo reinantes na sociedade brasileira, estruturas da violência patriarcal capitalista, sobretudo pensando sobre o caso recente de estupro da jovem abandonada pelo motorista de aplicativo em Belo Horizonte/MG. Ou ainda, da revitimização sofrida por mulheres no sistema judiciário em Juazeiro do Norte/CE, onde o agente público ao invés de garantir um espaço seguro e ético de atendimento às vítimas questiona a veracidade dos relatos partindo de vivências dele, homem cis branco de classe média e ocupando um cargo de poder. Pra variar, só que não, mais um homem que não demonstra a menor empatia com as mulheres, que tem um ego que só os homens brancos possuem. Ou do homem que em João Pessoa/PB esfaqueou os olhos de sua ex-esposa na frente dos dois filhos deles, isso para que ela não pudesse manter interações com outros homens. A lista de motivos é, infelizmente, interminável e se renova cotidianamente.

No entanto, esse texto não é sobre as violências que as mulheres sofrem em seu dia a dia, mas sobre as possibilidades de construção de outras narrativas e mundos. Quero conversar sobre o espetáculo porElas do grupo Ocupações Artísticas da Cidade, que trás por meio de um espetáculo teatral de rua o debate sobre a violência contra a mulher. A temporada de lançamento da peça aconteceu entre os dias 1 e 6 de agosto passando por três bairros da cidade de Crato, no Cariri cearense – Batateiras, Pimenta e Centro. Sendo o primeiro um bairro periférico em uma das entradas do município, o segundo um bairro de classe média, mas sendo apresentado ao lado de uma escola pública e numa escadaria numa região menos movimentada do bairro e o terceiro sendo uma área marginalizada do centro e que liga a parte baixa da cidade ao grande Seminário, conjunto de bairros periféricos que ficam na parte mais alta da cidade. Cada local recebeu duas apresentações.


“porElas é um grito, um abraço, aquilo que a garganta tá cansada de repetir mas precisa continuar… precisa" / Brasil de Fato Ceará

O cenário estava marcado por uma escada, mesmo que a ação tenha ocorrido em três pontos distintos da cidade, sempre havia uma escada, que pode inferir várias leituras, mas talvez a que mais instiga é a leitura de classes, de que existe os que estão abaixo e os que estão acima, que existe estratos diferenciados pela força da violência em nossa sociedade, como as mulheres, que sofrem o peso do machismo e do patriarcado mesmo quando são das elites. Mas uma outra leitura possível, também muito potente sobre o signo escada tem basicamente um sentido oposto, pois as escadas são estruturas que unem territórios distintos dentro de um mesmo local, que une topografias diversas, que reorganiza os caminhos de uma cidade. Tenho certeza que vocês tem outras leituras sobre o que significa uma escada, adoraria conhecer, inclusive.

Depois da escada, achei muito interessante a simplicidade dos elementos cênicos: sinalizadores de fumaça rosa, um varal bem grande que ocupa uma boa área, baldes plásticos, celulares velhos e sacos com ervas pendurados no varal, água com essência de menta (me parece), chá, bules e xícaras de ágata, velas, fotografias ampliadas e uma corda dessas de pular, que duas pessoas rodam enquanto outra pula ao centro, um imenso tecido rosa translúcido. O figurino igualmente simples, mas com elementos que também comunicam muitas coisas, como o uso de vestido, abrindo para possíveis leituras sobre os padrões de vestimenta imposto sobre as meninas e mulheres.


Elas usam de cantigas populares que contribuem para a manutenção da lógica de violência e a reconfiguram. / Brasil de Fato Ceará

São três atrizes em cena – Sâmia Ramare, Cecília Lauritzen e Lia Vieira, três mulheres cis, de cores diversas, uma delas mãe, com orientações sexuais diversas, oriundas de estados brasileiros diferentes, mas todas vivendo aqui no Cariri, uma das regiões que tem um triste e largo histórico de violência contra a mulher, com casos absurdos de assassinato em praça pública durante um grande evento religioso na cidade, como é o caso da professora Silvany que as artistas citam em cena. Elas relatam ainda situações que sofreram em sua própria vida ou pelo menos apresentam como se fossem caso próprios, situações de quando eram crianças e já na vida adulta onde sofreram algum tipo de assédio e/ou agressão física, verbal e psicológica.

Um importante elemento que elas fazem é a reflexão entre a relação da violência sofrida por crianças, que é segundo dados oficiais sofrida principalmente por meninas negras, com a violência sofrida pelas mulheres em sua vida adulta. Usam de cantigas populares que contribuem para a manutenção da lógica de violência e a reconfiguram, inclusive incorporando o número 180, utilizado para denunciar casos de violência contra mulheres. Usam de brincadeiras como a de pular corda para refletir sobre a segurança das crianças. Sempre com elementos estéticos e poéticos muito simples, mas sem serem simplistas, fazendo importantes e profundos aportes reflexivos através de imagens de fácil compreensão, sobretudo pelo fato de terem escolhido fazer um trabalho com a rua, que reúne públicos diversos e dispersos.

Realizam esse importante espetáculo que une aí o teatro de rua, o teatro de vivência e mesmo um teatro performativo para construir um diálogo com aquele território que dura algo como 50 minutos, mas que necessitou todo um contato prévio com os moradores da rua, que se unem a produção do espetáculo, dando suporte as astistas para que elas consigam apresentar o trabalho ali, naquele contexto. Finalizo com um texto do próprio grupo, que as astistas utilizaram durante as divulgações da temporada, pois nada melhor do que a palavra delas mesmo para falar sobre seu trabalho.


São três atrizes em cena - Sâmia Ramare, Cecília Lauritzen e Lia Vieira - na imensidão da cidade / Brasil de Fato Ceará

 

“porElas é um grito, um abraço, aquilo que a garganta tá cansada de repetir mas precisa continuar…precisa
precisa continuar sendo precisa!
porElas é uma denúncia
porElas é um ritual da cidade que grita ser mulher, por mulheres, com mulheres
porElas é um café na sala da casa de uma senhora de quase setenta que sedenta por contar sua história abre suas portas, lamenta suas pernas e narra com olhar misterioso uma vida de trabalho, de dedicação
é banana amassada com açúcar de Vó
ervas, banho, chá, suspiro.”

*Lívio Pereira é trabalhador da cultura e militante social, escreve para o BdF há mais de um ano.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. O título foi retirado de um dos versos da canção que encerra o espetáculo.

Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.

Edição: Camila Garcia