Há quase um ano uma juíza tentou convencer uma criança de 11 anos a levar adiante uma gravidez fruto de um estupro em Santa Catarina. Em 2020, uma menina de 10 anos, estuprada desde os 6 anos por um tio em Pernambuco precisou viajar para o Espirito Santo onde enfrentou dificuldades para realizar o aborto legal, incluindo manifestantes religiosos que rezavam em frente ao hospital e tentaram entrar na unidade para impedir o procedimento, legal segundo a legislação brasileira.
Os dois casos, amplamente divulgados pela mídia, são um retrato do que acontece no país. No Sul ou no Nordeste, o aborto existe e é uma dura realidade que milhares de mulheres enfrentam todos os dias no Brasil. São 500 mil casos por ano, segundo a última Pesquisa Nacional de Aborto (PNA 2021). O levantamento mostra que uma a cada sete mulheres, até os 40 anos, já fez pelo menos um aborto na vida. 52% delas realizaram o procedimento com menos de 19 anos. Nesse contexto, 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos e 6% eram meninas entre 12 e 14 anos.
Os números por si só suscitam o debate necessário sobre a legalização do aborto no país e a necessidade de revisão do Código Penal para descriminalizar o aborto de acordo com as diretrizes atualizadas da Organização Mundial da Saúde em 2022. Mas os trágicos casos também revelam uma situação preocupante: O papel da mídia na defesa dos direitos violados das mulheres e de seus corpos. Essa é uma das pesquisas da série Vozes Silenciadas, uma publicação do coletivo de comunicação Intervozes que está em caravana no Nordeste para divulgar pesquisas inéditas, trazendo conhecimento para as discussões de temas relevantes para a sociedade brasileira.
A pesquisa “O corpo é nosso - a cobertura da mídia tradicional e da religiosa sobre direitos sexuais e reprodutivos” analisa a cobertura editorial em 409 matérias publicadas por nove veículos em três momentos diferentes: Em 2018, durante as audiências da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442; em agosto 2020, no caso da criança estuprada em Pernambuco que precisou viajar para o Espírito Santo para realizar o procedimento; e um mês depois, quando o Ministério da Saúde publicou duas portarias com novas regras que dificultam o acesso para o aborto legal no país. Vale lembrar que as portarias foram revogadas nos primeiros dias do governo Lula, em janeiro deste ano.
Além de ser uma questão de saúde pública, as pesquisas referentes ao aborto no Brasil mostram que o tema também precisa ser visto de modo mais amplo, levando em conta componentes como classe, raça e gênero, respeitando os direitos sexuais e reprodutivos, fundamentais para a autonomia de pessoas capazes de gestar, decidirem sobre seus corpos e seus projetos de vida.
A jornalista e professora da Universidade do Rio Grande do Norte, Mônica Mourão, pesquisadora da publicação do Intervozes explica que na análise das reportagens é possível perceber que a imprensa se coloca como favorável ao aborto legal, mas não aprofunda o tema. “Muitas vezes, não se coloca a questão como o direito a autonomia das mulheres de decidir sobre seu corpo e seus projetos de vida e no geral, não houve aprofundamento do tema, não se fala de questões interseccionais, questões de raça, classe e a gente sabe que mulheres negras e pobres são as que mais morrem vítimas em procedimentos não seguros”, alerta a pesquisadora
A pesquisa constatou também que na maioria das matérias analisadas a imprensa não relacionou a publicação das portarias que dificultavam o acesso ao aborto legal com o momento político vivido no país, com narrativas dominadas pela direita conservadora do governo Bolsonaro. “Especialmente no caso da criança, os veículos se colocavam a favor do aborto legal. Mas não se falou que os dados da criança foram vazados pela Sara Winter, defensora do Governo Bolsonaro, e não se fez uma relação entre as portarias que dificultavam o procedimento, como uma reação do governo ao fato da criança ter conseguido fazer o procedimento”, ressalta Mônica.
No caso da criança, as duas mídias religiosas analisadas, o site católico Canção Nova e o evangélico Gospel Mais, foram os únicos que se posicionaram contra o procedimento legal. “As mídias religiosas achavam que a menina teria que passar por uma cesárea e colocar o bebê para adoção. Essa foi uma grande diferença para a cobertura da mídia tradicional”, explica a pesquisadora.
Além dos sites religiosos, a pesquisa analisou três telejornais (Jornal Nacional, Jornal da Record e SBT Brasil), uma agência pública de notícias (Agência Brasil) e três jornais impressos, em suas versões on-line (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo).
A série Vozes Silenciadas, é uma coleção produzida pelo Intervozes desde 2011 e já investigou o enquadramento midiático conferido ao MST, aos protestos de 2013, à Reforma da Previdência do Governo Bolsonaro e ao derramamento de petróleo na costa brasileira em 2019.
Quem controla a mídia
Como parte das atividades da Caravana do Direito à Comunicação, o Intervozes lança ainda o livro Quem Controla a Mídia - dos velhos oligopólios aos monopólios digitais. Publicado pela Editora Veneta, o livro Quem Controla a Mídia traz dez artigos de pesquisadores de diferentes áreas.
Dividido em três partes, a publicação busca chamar a atenção para o fato de que o cenário de intensa concentração midiática e tecnológica tem consequências distintas para cada grupo social. Essa concentração do poder comunicacional significa que menos universos, culturas, perspectivas e cotidianos são representados e têm voz nos discursos em circulação no território nacional.
O livro está à venda no site da Editora Veneta e na Livraria Lamarca. Exemplares também serão disponibilizados para consulta na Biblioteca Estadual Menezes Pimentel e na Biblioteca de Ciências Humanas da Universidade Federal do Ceará.
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Edição: Francisco Barbosa