No último dia 25 de março foi comemorada a Data Magna do Ceará, que celebra o marco histórico do fim da escravidão no estado, que foi a primeira província brasileira a libertar os escravos, no dia 25 de março de 1884. Um personagem muito conhecido e que teve papel fundamental na luta pela libertação dos escravos no Ceará foi Francisco José do Nascimento, também conhecido como Dragão do Mar. Mas você já ouviu falar da importante atuação de Preta Tia Simoa? Você sabia que ela foi uma liderança na mobilização de trabalhadores jangadeiros contra o transporte de negros escravizados? Hoje vamos conhecer mais sobre a sua história. E para falar sobre o tema vamos receber Karla Alves, pesquisadora da história da população negra do Ceará, poeta, mãe e aprendiz na instituição Vida.
Quem foi Preta Tia Simoa?
A Preta Tia Simoa, designação na qual ela foi rapidamente mencionada em alguns registros históricos como no livro do historiador Raimundo Girão sobre abolição, e outros estudiosos como Clóvis Moura, Júlio Abreu, foi uma preta liberta que atuou na mobilização e articulação social para apoiar a primeira greve dos jangadeiros que teve início no dia 27 de janeiro de 1881. Essa greve começou a ser articulada já no dia anterior através do chefe da capatazia dos jangadeiros, que era José Luiz Napoleão, o então companheiro da Preta Tia Simoa e que passou a madrugada já ali na praia junto com a outros jangadeiros se preparando para a greve que ia acontecer na manhã do dia 27 de janeiro de 1881.
Durante esse acontecimento a polícia foi chamada para prender, para conter os jangadeiros e aí foi fundamental o apoio social da população local para apoiar a greve dos jangadeiros e impedir o embarque de negros escravizados e juntos poderem gritar que a partir daquele dia não se embarcaria mais pessoas negras, pessoas pretas como escravizadas no porto do Ceará. E segundo o historiador Raimundo Girão, que é o historiador mais estudado quando o assunto é Abolição no Ceará, havia mais de 1.500 pessoas naquela manhã de 27 de janeiro na praia, para apoiar a greve, e essas mais de 1.500 pessoas foram mobilizadas pela Preta Tia Simoa. Esse apoio foi fundamental para demarcar essa data como o episódio que definiu os rumos para a abolição da escravidão na então província do Ceará, que iria se efetivar três anos mais tarde, em 1884.
Qual a importância de Preta Tia Simoa para a luta contra o transporte de negros escravizados no Ceará?
A Preta Tia Simoa se torna importante a partir desse episódio da primeira greve. A partir dela a gente pode pensar sobre a auto-organização política das pessoas negras, mesmo dentro de regime escravocrata, a resistência dessas pessoas também que não só enfrentavam o sistema como sabiam se organizar, puderam se organizar entre si, entre pessoas negras para poder coletivizar essa resistência e não individualizar. E também o enfrentamento através do confronto direto que é o caso desse episódio da primeira greve. Foi enfrentamento direto, inclusive envolvendo a polícia, que foi chamada na época, mas que a auto-organização política das pessoas negras saiu vitoriosa, já que uniu ali uma classe de trabalhadores pretos, no caso os jangadeiros, que transportavam essas pessoas que iriam ser escravizadas da praia até o lugar onde o navio estava ancorado, e se negaram a fazer esse transporte.
Uma mulher preta que viveu durante o período colonial, dentro do sistema escravista, mas que lutou pela liberdade, que se autodefiniu, se impôs, ultrapassou os limites impostos pelo sistema, mobilizou mais de 1.500 pessoas e interrompeu o sistema, o funcionamento sistemático de uma opressão que era destinada institucionalmente contra pessoas pretas. Então esses são os principais pontos que enaltecem a importância dela em toda essa luta.
A história ainda deixa de lado as lutas e conquistas das mulheres?
Eu percebo que sim. Existe um mecanismo institucionalmente articulado, que é sistêmico, que opera para que esse silenciamento seja ocasionado, que se torne um fato. Enfim, e por que isso ainda acontece? Acontece porque a gente vive em uma sociedade patriarcal, herdeira do colonialismo, estruturalmente racista e que... se o racismo, como disse Silvio Almeida, é estrutural ele é estruturante. Então ele vai moldando a nossa forma de pensar e a nossa forma de se comportar no mundo a partir das instituições sociais que são criadas a partir dessa estrutura racista, patriarcal e que vai estruturando a nossa mente, nosso comportamento, as nossas relações sociais com base nessa racialidade.
Então rola um jogo de interesse dentro do sistema capitalista com o sucesso da representatividade, porque a nossa política é fundamentada nisso, é uma democracia representativa, que acaba definindo todo modo de praticar essa representatividade e aí acaba que esse “querer um lugar”, como representatividade, faz com que muitas pessoas pisem nos ombros de muitas para poder emergir como representatividade. Você silencia uma maioria para poder falar no lugar dela, representar essas pessoas silenciadas que não tem lugar de fala. Então existe uma promoção desse lugar de silenciamento para que possa emergir representantes, senão o jogo não funciona.
Toda essa intersecção do patriarcado com o capitalismo, com a herança colonial e a estrutura racista faz com que sistematicamente esse lugar de silêncio seja construído, seja delegado para que mulheres ocupem, principalmente mulheres pretas.
A Preta Tia Simoa já conquistou seu lugar de reconhecimento na história, ou esse reconhecimento ainda é um caminho que está sendo trilhado?
Eu acho que seria sim para as duas perguntas. Está sendo trilhado, conquistou alguns degraus de reconhecimento, porque existe uma lei de número 17.688, que foi instituído no dia 28 de setembro de 2021 e que institui o Dia da Preta Tia Simoa e da Mulher Negra, e a Semana Preta Tia Simoa de Combate à Discriminação Contra as Mulheres Negras no Estado do Ceará.
Então para que se efetive de fato acho que teria que promover a espécie de sei lá... justiça em relação a forma como essa data foi instituída. Então se conquistou sim, voltando a sua pergunta, você conquistou um espaço de reconhecimento, mas isso custou a invisibilidade de outras mulheres pretas, o que nega completamente a importância e toda a atuação da Preta Tia Simoa e também a minha quando estudei a história dela justamente para romper com essa invisibilidade histórica.
O que é a Data Magna e qual a importância dela para nós e para nossa história?
Existe uma discussão entre historiadores que questiona essa data do 25 de março como a data da Abolição, porque mesmo após o 25 de março de 1884 existem registros de pessoas negras sendo escravizadas em outros municípios, como Milagres, por exemplo. Vários jornais da época trazem isso, que mesmo após a instituição dessa data, demarcando o fim do embarque de escravizados, ainda existia a prática da escravização acontecendo na Província do Ceará pelo interior. Então alguns historiadores questionam essa data, mas ainda assim, apesar disso, a data foi instituída como Data Magna e foi instituída em 06 de dezembro de 2011, se tornando feriado estadual.
É importante frisar que essa data, para nossa história, acaba demarcando a proibição do tráfico que interprovincialmente fazia com que muitos pretos libertos fossem novamente recolocado dentro do sistema escravocrata como mercadoria, servindo de mão de obra escravizada, mesmo que eles fossem libertos e conseguissem provar a sua liberdade com a carta de alforria. Ainda assim corriam o risco de serem transformado novamente em propriedade.
Então com a instituição da data 25 de março de 1884 isso demarca a proibição do tráfico negreiro no porto do Ceará e isso institui o fim do sistema escravocrata na província do Ceará. Essa é a grande importância. E aí, conseguir libertar, conseguir garantir o cumprimento dessa lei no restante da providência, no interior onde ainda havia mão de obra escravizada seria uma questão de tempo, como de fato aconteceu. Então essa é a grande importância.
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Edição: Camila Garcia