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Beata Maria de Araújo ganha estátua em Juazeiro, reflexo da luta popular por reconhecimento

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Colocar essa estátua num dos principais locais da cidade de Juazeiro do Norte é um importante passo na reconstrução de nossa memória coletiva. - Foto: Lívio Pereira
Até onde sei, essa é a primeira estátua em homenagem a Beata Maria de Araújo.

Essa semana fui a Juazeiro do Norte para uma reunião de trabalho e ao passar pela praça Padre Cícero me deparo com três novas estátuas que compõe a paisagem sociocultural e geopolítica da cidade – Beata Maria de Araújo, Monsenhor Murilo e Padre Cícero. Não é que eu não soubesse delas, já havia visto nas redes de uma amiga e tinha lido algo a respeito no portal da prefeitura. Mas o encontro, a experiência estética de estar com as estátuas é única.

Primeiro elas fazem parte dessa linha de estátuas que estão no chão, logo podemos chegar perto, contorná-las, tocá-las, tomar várias perspectivas de algo que está ao nosso alcance. Diferente daquelas que ficam em cima de grandes torres de concreto, criando um distanciamento entre nós reles mortais e os imortalizados em bronze ou outro material em seus pedestais de poder, mesmo depois de mortos e transformados em terra.

Até onde sei, vale deixar aqui explicitado, essa é a primeira estátua em homenagem a Beata Maria de Araújo, que é a personagem principal do milagre em Juazeiro. Fora o Museu de Cera na Colina do Horto, claro. Até imagens em gesso, material clássico na produção santeira da cidade, são bem raras. Não gente, não foi Cícero quem fez o milagre, foi Maria, ele apenas estava no momento. Claro, para quem acredita que houve milagre. Não venho aqui defender fé nenhuma, mas tratar do que representa essa imagem ser colocada na principal praça da cidade, onde toda romeira e todo romeiro ou mesmo turistas não ligados a religião passam, assim como a população em geral.

Para mais elementos sobre a parte religiosa existem várias biografias do padre Cícero que tratam da história dele, do milagre e mesmo sobre Juazeiro, que sempre vem como cenário para Cícero e nunca como protagonista, mas sugiro fortemente a leitura do livro da historiadora Dia Nobre – O Teatro de Deus: as beatas do Padre Cícero e o espaço sagrado de Juazeiro, que foi um dos livros lançados no centenário da cidade.

Segundo, historicamente as estátuas colocadas em praças e outros espaços públicos, foram para homenagear os protagonistas da narrativa oficial, então vemos imperadores, marechais, duques, bispos, presidentes, militares… Logo, homens brancos cis e com poder econômico, que são os sujeitos políticos que dominam a história oficial, seja protagonizando seus marcos seja escrevendo sobre eles. Mulheres e pessoas negras, principalmente mulheres negras, são personagens muito raros nessa construção simbólica da memória em espaços públicos, assim como pessoas LGBTQIAPN+, sobretudo pessoas trans. Não esqueçam, as estátuas representam símbolos nacionais, logo, pessoas negras, mulheres, dissidentes de gênero e pobres não podem ser protagonistas de uma narrativa que segue sendo supremacista branca, cisheteropatriarcal e colonial capitalista.

Um elemento para se pensar sobre essas figuras é que a Beata uma mulher negra cis pobre analfabeta e leiga (pessoa religiosa que não é padre) não foi colocada sozinha ou com outras beatas da época, mas ladeada por dois homens brancos cis padres letrados e com posses. Por que ela não merece uma estátua em sua homenagem em que ela seja a protagonista de fato? Ao colocar o monsenhor Murilo e Cícero ao lado, este que além de uma estátua imensa no Horto tem estátuas em materiais diversos espalhados por toda cidade, inclusive tem outra bem antiga em bronze na mesma praça; reduz-se sua importância. Mas reitero que foi um marco importante para a cidade.


O Movimento pela Reabilitação da Memória da Beata Maria de Araújo propôs junto a Câmara Municipal uma Lei que torna obrigatório, no âmbito do município, a presença da foto da Beata Maria de Araújo. / Foto: Blog Cariri das Antigas

A Igreja Católica durante muito tempo agiu para o silenciamento do suposto milagre, mas ao não conseguir silenciar a história optou por embranquecê-la e institucionalizá-la ao transferir o protagonismo para Cícero. Na época, a Igreja censurou trechos de músicas do cancioneiro católico popular que faziam referência a Beata Maria de Araújo, recolheu escapulários e outros artigos religiosos que tinham sua foto, proibiu confecção de imagens. Se alguém dúvida basta ler a forma como os enviados de Roma para analisar o caso se referiam a Beata, está aí na rede para quem quiser ver. Eu prefiro não reproduzir nenhum trecho aqui, pois as palavras selecionadas por eles é de uma violência absurda. Vale lembrar ainda que os restos mortais de Maria de Araújo sumiram do local onde ela foi enterrada, o que é no mínimo estranho, e dizer que uma das formas de definir se uma pessoa é santa ou não para Igreja envolve a análise de seus restos mortais, então fica a pergunta – quem sumiu com os restos mortais da Beata Maria de Araújo?

Colocar essa estátua num dos principais locais da cidade de Juazeiro do Norte é um importante passo na reconstrução de nossa memória coletiva, na forma como entendemos que os fatos ocorreram, mas para isso cabe a nós cidadãos juazeirenses disputar a narrativa, pois a estátua por si só não afetará a forma como as pessoas leem a história. Precisamos nos apropriar do que foi que aconteceu de fato, entender os interesses por trás e assumir uma posição.

O Movimento pela Reabilitação da Memória da Beata Maria de Araújo propôs junto a Câmara Municipal uma Lei que torna obrigatório no âmbito do município a presença da foto da Beata Maria de Araújo, em moldura e dimensões idênticas as fotografias já existentes do Padre Cícero, projeto aprovado e sancionado em 2021. Outras propostas do Movimento são a escavação do Cemitério do Socorro no intuito de descobrir onde estão os restos mortais de Maria e a construção do Memorial Maria de Araújo.

Por fim, dizer que Ranilson Viana, escultor da obra, acertou na construção da imagem de Maria de Araújo, pois não embranqueceu ela, pelo contrário, me parece muito bem inspirado em como acreditamos que Maria se parecia. Digo como acreditamos que ela era, pois temos acesso a pouquíssimos registros dela. Se vocês jogarem em qualquer buscador de imagens na internet para testar verão o que estou falando.

*Lívio Pereira é trabalhador da cultura e militante social, escreve para o BdF há mais de um ano.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Camila Garcia