Quantas vezes você foi a um museu e se deparou com a produção artística de uma pessoa trans? Ou quantas vezes chegou em algum desses espaços de cultura e foi atendido por uma travesti? Quantos professores não binários você já encontrou dentro da sala de aula? A invisibilidade desta população desenha caminhos para uma triste estatística: há 13 anos no topo da lista, o Brasil é um dos países que mais mata pessoas trans no mundo.
Durante todo o mês de janeiro, o Museu da Imagem e do Som (MIS), preparou uma programação transcentrada. A ideia é oferecer diversas atividades que valorizem a existência e o trabalho artístico de pessoas trans, travestis e não binárias. Mas a ideia, que começa por conta do mês da visibilidade trans, deve tornar-se permanente na programação do equipamento.
Por isso em janeiro, o palco é delas. No país onde mais se mata pessoas trans, ter um mês que demarca a visibilidade trans e travesti abre um importante espaço de diálogo, principalmente quando estamos falando de um equipamento público, como é o caso do MIS. “É um passo muito importante quando a gente entende que trabalhar perspectivas transcentradas dentro de espaços de cultura é fundamental para que a gente possa pensar, re-imaginar esses imaginários estabelecidos”, observa Lipe da Silva, pessoa não- binária e educadora do museu.
Ocupação que traz uma demarcação importante e abre diálogo para pautas transcentradas não só em janeiro mostra que este universo está para muito além do estigma. “Eu acho que quando a gente começa a disputar esses espaços públicos e disputar espaços de memória também, a gente tá querendo falar que a gente não é só violência, que a gente não quer só pensar e ter as nossas vidas sendo atravessadas pela violência, mas a gente também produz perspectivas de vida, perspectivas de reorganização da nossa sociedade. A gente está pensando o bem viver, a gente está pensando o futuro”, enfatiza Lipe.
Ana Paula, travesti e auxiliar educativa do MIS, ressalta o significado de ocupar estes espaços. “É uma importância histórica. Do que eu tenho conhecimento, é a primeira vez que uma instituição pública, do porte do Museu da Imagem e do Som, aceita essa proposição, de fazer uma programação que não vai acontecer durante um dia específico, está acontecendo ao longo do mês de janeiro e a pretensão é que essa programação se torne uma programação permanente de formação e educação do museu”.
Batizada de Trair o CIStema: fabulações transcentradas, a programação tem como objetivo oferecer diversas atividades que valorizem a existência e o trabalho artístico de pessoas trans, travestis e não binárias, pensando em ações de formação e difusão. “Eu acho que a principal discussão é o que é que se configura, como se configura um museu na contemporaneidade. Então hoje o MIS busca se alinhar, se enquadrar, perceber, se construir a partir de uma nova percepção do que é um espaço de museu. O que a gente busca construir nesse acesso é também um pertencimento e também uma ideia de reafirmar esse direito de fala”, afirma Zoraia Nunes, diretora adjunta do MIS.
Espaços que vão sendo desenhados não por uma gestão, mas pela afirmação do que é de direito de todos. “Acho muito importante a gente pensar que não é sobre uma concessão, não é sobre o museu ou sobre um equipamento público está concedendo um direito, é sobre um equipamento público está reafirmando, está dizendo que está conectado com o mundo, está dizendo que pode ser instrumento de afirmação e reafirmação de um direito”, informa Zoraia.
A proposta marca o mês da visibilidade trans, mas traz à luz também a discussão sobre a importância da abertura desses espaços para esta população, não só enquanto artistas, mas em suas diversas formas de existir. Aires, travesti e curadora da programação, reforça a importância dessas discussões se ampliarem para além da pauta enquanto artistas, mas também enquanto trabalhadores dentro dos mais diversos espaços de poder. “Durante esse processo, a gente fez algumas pesquisas para tentar também quantificar a presença de pessoas trans, travestis e não binárias dentro dessas instituições. Atualmente, dentro dos dois institutos, a porcentagem é muito mínima de contratação em nível CLT. Então a gente está falando de uma presença ainda pouco significativa no sentido da quantidade. Aqui dentro do museu, nós temos três pessoas trans trabalhando no museu e acaba sendo o equipamento, dentro desses 27 equipamentos, que tem mais pessoas trans contratadas CLT. A gente, olhando esse cenário, a importância é entender que ainda existem muitas lacunas, socialmente falando”, reitera.
Para Ana Paula, estar neste lugar é abrir espaços para que muitos outros tantos espaços também possam ser ocupados. “Eu sou uma travesti não passável, preta, macumbeira e que estou ocupando esse lugar, o lugar que historicamente é um local de privilégio, em uma das áreas mais valorizadas e mais seguras de Fortaleza, que é o Meireles. Historicamente, meu corpo é um corpo violentado e colocado num lugar de violência, como violenta, por ser preta, por ser gorda, por não ser passável, por ser travesti. Então eu estar hoje nesse lugar, em frente ao palácio da abolição atuando dentro de um museu como educadora é muito simbólico”, reforça. E finaliza. “Se a gente pega isso e coloca dentro dessa programação do mês tem a importância de mostrar para as outras meninas travestis e transexuais, da periferia, que sejam pretas, que não são passáveis, ou seja, que não se passam por uma mulher cisgênero, que são gordas, que não estão dentro de um padrão heteronormativo cisgênero e nem dentro de um padrão de beleza criado, que elas podem também estar ocupando esse lugar, quer sejam como educadora, quer seja como artista”.
Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.
Edição: Francisco Barbosa