Ceará

prevenção HIV/Aids

Entrevista | “Pessoas ainda morrem de complicações de Aids porque não tem campanha o ano todo”

Rhamon Matarazzo falou com o Brasil de Fato sobre seu trabalho no teatro onde aborda o tema arte, HIV e Aids.

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
No dia 1º de dezembro de 2017 Rhamon lança esse espetáculo intitulado Lázaro depois de uma pesquisa gigantesca. - Foto: Acervo Rhamon Matarazzo e Centro Cultural Bom Jardim

No mês passado aconteceu mais uma edição da campanha Dezembro Vermelho, uma mobilização nacional que existe há alguns anos para combater o HIV, a Aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis. A iniciativa busca chamar atenção para a prevenção, assistência e a proteção dos direitos das pessoas com HIV. Rhamon Matarazzo, ator e diretor teatral que traz em suas obras o debate sobre arte, HIV e Aids falou com o Brasil de Fato sobre a construção dos seus trabalhos no teatro e sobre as ações realizadas para pessoas com HIV/Aids. Confira.

Qual a importância do Dezembro Vermelho?

O dezembro vermelho surge da necessidade de se fazer uma campanha contra um vírus que começa muito estigmatizado, na década de 1980, por alguns enganos, equívocos sociais, com recorte histórico nos comportamentos da igreja católica, que começa a falar no mundo inteiro que o HIV é um castigo pela promiscuidade humana, em especial, nos gays. A gente sabe, quando nós mexemos na sexualidade das pessoas isso gera um tabu, principalmente para uma ala conservadora que existe no mundo todo e esse dia é exatamente para estabelecer algumas reflexões acerca de dúvidas, porque no Brasil e no mundo não temos políticas públicas eficazes ou suficientes, ou quando são eficazes o suficiente não abrange todas as informações que a gente traz nos últimos 41 anos. Já estamos com quase 42 anos de HIV e nós ainda continuamos nessa questão de ter o 1º de dezembro, Dia Mundial de Combate à Aids, mas fica muito na esfera do dia 1º de dezembro, fica muito na esfera do Dezembro Vermelho, inclusive, tenho um projeto de construir um calendário de pessoas com sorologia aberta onde elas falem que o janeiro delas também é vermelho, o fevereiro, e assim por diante.

Você vive com HIV desde 2009. Gostaria que você falasse um pouco sobre a assistência e o acompanhamento por parte do poder público para pessoas com HIV.

Olha, a assistência para pessoa que vive com HIV no Brasil, que é um país de referência, é muito boa, mas nós temos que ver os marcadores sociais de pessoas pretas, pessoas que vivem na periferia. Mulheres são alvo do HIV, porque é um vírus silencioso que se a gente for realmente remontar esse marcador a jovens da periferia, elas são muito atingidas, muito afetadas. Eu vivo em Fortaleza e o que eu vejo é isso, a maioria dos programas que atendem essas demandas, mesmo que tenham projetos que façam com que os educadores de pares, no caso eu sou um educador de par, que é você ir ao posto de saúde, no SAE, que é um serviço de atendimento especializado. Por mais que a gente faça esse programa ele ocorre em datas pontuais e aí isso é muito negativo de uma certa forma, porque você está ali falando com vinte pessoas em uma cidade que tem quase quatro milhões de pessoas, e é muito difícil a gente abarcar uma população inteira.

O que acontece? Segundo dados do último boletim epidemiológico da Secretaria do Estado do Ceará, 245 óbitos no estado do Ceará. Apenas no estado do Ceará, em 2021. Então as pessoas continuam morrendo de complicações de Aids, ou porque chega muito tarde no serviço, ou porque quando descobrem não querem tomar as medicações, porque não tem campanha o ano todo, porque não têm política pública para financiar essa campanha o ano todo para que a pessoa se sinta livre para fazer o uso dessa medicação, que é uma medicação extremamente eficaz. Eu comecei a minha medicação em 8 de dezembro de 2009, poucos meses depois do meu diagnóstico, que foi em 29 de maio de 2009, e assim, é complicado para uns, não é complicado para outros, porque tem efeito colateral, ou não tem efeito colateral, depende muito do organismo.

No meu caso, eu passei um ano me adaptando com as medicações, mas tem gente que não sente uma dor na unha, e assim, sobre o serviço que eu sou atendido, que é o Hospital São José, falta estrutura física, espaço físico, nós temos a mesma estrutura há algumas décadas. A questão da medicação nunca falta, nós tivemos aí um retrocesso esse ano porque Bolsonaro cortou as verbas da saúde, o que fez com que muitos serviços de saúde fracionassem a questão dos antirretrovirais para ter para todo mundo. Por exemplo, a gente recebia uma remessa de três meses, agora a gente está recebendo uma remessa de um mês e a gente passou por uns maus bocados, pensando até mesmo em um cenário que poderia acabar a medicação e a gente ficar sem essa medicação, sem a produção dessa medicação, que a gente produz aqui no Brasil desde 1996 com a quebra das patentes pelo José Serra [então Ministro da Saúde] que fez em 1996. Ficou muito complicado, mas nós fomos lá e fizemos a nossa democracia bem direitinho, exercemos o nosso direito e aí acredito que o novo Ministério da Saúde já tenha emitido uma nota dizendo que nós não nos preocupemos porque as medicações estão garantidas.


"Eu comecei a minha medicação em 8 de dezembro de 2009, poucos meses depois do meu diagnóstico, que foi em 29 de maio de 2009", Rhamon Matarazzo / Foto: GOVCE

E você acredita que ainda exista um tabu para falar tanto de HIV como da Aids?

Demais. Principalmente no Ceará que é um estado conservador. Eu não entendia o que era o conservadorismo, mas você vê. Temos pessoas que vem do interior fazer o tratamento aqui em Fortaleza e as famílias delas muitas vezes não sabem. Tem mães que antes de terem seus filhos contraíram o HIV e hoje, 30 anos depois, os próprios filhos não sabem que a mãe tem HIV. Eu também demorei oito anos para revelar minha sorologia, foi uma coisa difícil para mim também. Hoje em dia, por exemplo, ministro cursos de arte e aí quando eu coloco teatro, documentário e Aids, porque eu costumo dar uma assinada com a Aids no final para ver se as pessoas se alertam para isso, e as pessoas ainda têm muito uma visão de que a Aids é um tema macabro, sombrio, de que o HIV é um tema macabro, sombrio, nefasto, uma coisa cinza. Muita gente não vem assistir o meu espetáculo achando que o meu espetáculo é chato, panfletário, que vai mandar as pessoas usarem camisinha. Eu acho que para isso servem as campanhas de prevenção, meu espetáculo está aí para a dramaturgia, para falar sobre a relação dos seres humanos com o HIV e não do próprio HIV em si, porque do vírus quem tem que falar é o médico, eu falo sobre questões históricas, questões de como é que uma pessoa se sente sendo destratada e aí o comportamento, como eu já falei, da igreja e de seus seguidores.

Como artista você traz o debate sobre a arte, HIV e Aids. Queria que você falasse um pouco sobre o seu trabalho e como você trouxe esses temas para as suas obras.

Eu já fazia teatro desde os 19 anos e aí fiz alguns cursos do Teatro José de Alencar, fiz o curso aqui do IFCE. Quando eu estava terminando eu fiquei muito em dúvida sobre qual tema abordar. Na verdade, eu já tinha na cabeça que eu poderia fazer alguma performance pequena sobre o tema e ali deixar o que eu tinha medo de falar sobre o assunto, mas aí eu vi o youtuber Gabriel Comicholi. Em 2016 ele revelou a sorologia positiva dele para HIV em público, hoje ele é uma referência nacional junto a outros. Está nascendo essa cena de influenciadores vivendo com HIV e fazendo essas campanhas e aí eu falei: “Bom, YouTuber eu não vou ser, então como é que eu posso fazer esse trabalho?” Aí pensei, “Poxa, estou terminando o curso de teatro então vai ser a montagem final”.

E aí, como eu já falei, no dia 1º de dezembro de 2017 eu lanço esse espetáculo intitulado Lázaro depois de uma pesquisa gigantesca. Eu achei que a gente tinha pouca literatura sobre Aids e pouca filmografia, mas é incontável o número de documentários, filmes, séries, produções acadêmicas como monografia, dissertação de mestrado, tese de doutorado sobre isso, e aí eu escrevo um espetáculo onde eu falo sobre um cara de 22 anos, de uma certa forma eu trouxe meu alterego, mas eu não escrevo a minha história, eu escrevo a história de um cara que vai ficar em coma, que não é uma coisa que eu passei. Ele vai ficar em coma em 1995 para 1996 e vai ver todo mundo morrendo no hospital de complicações de Aids, mas ele não morre, e as pessoas ficam olhando assustadas, abismadas como é que essa pessoa tem essa força toda e isso é uma analogia que eu faço a quem realmente sobreviveu. Tem gente que tem 41 anos de HIV.

Hoje você está com algum espetáculo?

A história é essa: 1º de dezembro de 2017 Lázaro, em setembro de 2019, dois anos depois eu lanço o espetáculo Corpo Dócil, que fala sobre como é a relação homoafetiva, de homens que são gays e que são abandonados por seus parceiros que não têm HIV, e como é que eles vão resolver isso, por exemplo, em cinemas homoafetivos, que a gente chama de cinemão. Como é que eles vão resolver isso em sauna gay, e se uma pessoa sabe dentro dessa sauna que você tem HIV como é que essas pessoas reagem. É uma temática muito delicada.

Quando eu fui fazer esse espetáculo eu disse: “Nossa! Sou eu”. E aí eu assumi o caráter autobiográfico, que está dentro da vertente do teatro documentário. Em 2021 – eu fui sempre nessa escala, de dois em dois anos lançava um trabalho – eu lancei o espetáculo Paroxítona, que fala de HIV e Covid-19, como é sobreviver ao isolamento social de treze anos, que eu já vinha sofrendo, e agora o isolamento social que todos têm que fazer lockdown. Eu tenho uma métrica muito repetitiva, começo a falar palavras paroxítonas acentuadas e não acentuadas como gripezinha, cloroquina... essas palavras bem enfadonhas, e eu coloco uma cena de guerra, de pós-guerra ou falando sobre a Aids. Vai subindo um letreiro sobre tudo que a gente estava vivendo. Em 2022 eu lancei o espetáculo I = I, que significa indetectável é igual a intransmissível. Depois que eu fiz um curso dentro de um grupo de trabalho da UNAIDS, em parceria com a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, a RNP Ceará, onde a gente fez uma preparação sobre adesão I = I. E aí, estudando sobre o indetectável = intransmissível, ou seja, a pessoa que tem HIV há mais de seis meses em tratamento com os medicamentos não transmite o HIV eu vi que muita gente tem um negacionismo de dizer “não, eu não acredito nisso. Não acredito que eu não transmita o HIV”, eu digo: “Mas como assim vocês não acreditam que não transmite o HIV se o médico fala sobre isso?”.

E eu não defendo aqui uma romantização do não uso do preservativo, tem que usar o preservativo e a gente sabe que tem inúmeras outras ISTs, mas sobre o HIV eu acho que a gente já poderia ter resolvido esse assunto, mas nós negamos uma cultura errada, preconceituosa, racista, machista, homofóbica, misógina, sobre tudo que nos rodeia desse preconceito, desse recorte, que eu falo recorte, mas muitas congregações religiosas, muitos credos religiosos, não só o recorte de uma igreja, mas várias outras denominações religiosas tem preconceito contra isso e a gente sabe muito bem que o poder executivo arrebanha essas pessoas para uma teoria da prosperidade e pessoas com HIV não cabem dentro desse mundo onde eles ilustram tudo naqueles livros bonitinhos que todo mundo vai para o paraíso e tudo o mais. O meu trabalho fala um pouco de morte, da mortalidade, mas ele é em favor da vida.

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Edição: Camila Garcia