Já eram quase dez horas da manhã de sábado quando o carro entrou na estreita estrada que leva até a comunidade do Cumbe, localizada na cidade de Aracati, litoral leste do Ceará. Fazia um lindo e escaldante sol e estávamos cansados da sexta recheada com a derrota do Brasil para Camarões na copa do mundo e das notícias que traziam jogadores da seleção fazendo refeições banhadas a ouro. Apesar do cansaço, eu, minha filha de 8 anos e um grande amigo estávamos ansiosos para vivenciar o Festival do Mangue e todas as suas experiências junto a comunidade quilombola, que há décadas luta em defesa do seu território.
O Cumbe fica a mais ou menos 150 quilômetros de Fortaleza e a 20 quilômetros de Canoa Quebrada, praia internacionalmente conhecida no Ceará. Ali, próximo do turismo comercial que se faz presente na praia vizinha, as famílias do Cumbe organizaram pela oitava vez, uma festa para celebrar a tradição e a re-existência do povo quilombola que vive na região. O festival, aliás, aconteceu no fim de semana que antecedeu o dia 5 de dezembro, data que a comunidade recebeu a certificação de quilombo da Fundação Cultural Palmares, no ano de 2014.
Apesar da certificação, 68 das 168 famílias que vivem na região não se reconhecem como quilombolas. A divisão é apenas um dos prejuízos visíveis trazidos pela instalação do parque eólico na região, nos anos 2000, que prometia emprego e progresso para a comunidade. Na prática, além de dividir o povo e acirrar conflitos internos, privatizou o acesso dos moradores à praia, comprometeu a pesca artesanal na região e resultou em ameaças de morte às lideranças que ousaram cometer o crime de defender seu território. Na década de 1990, a luta foi contra o impacto ambiental causado pela instalação de fazendas produtoras de camarão, que contaminou os aquíferos e o lençol freático, destruiu a mata ciliar e desidratou os bosques de mangue, comprometendo a cadeia alimentar dos crustáceos comuns no território. É essa paisagem seca e cinza que nos acompanha até avistarmos as primeiras casas da comunidade.
São as famílias que se reconhecem como quilombolas, que organizam o festival do mangue, por meio da Associação Quilombola do Cumbe, para onde fomos, assim que chegamos. Todos os participantes foram acomodados nas casas dos moradores, com aquele típico acolhimento do interior regado a sorrisos, café e simplicidade. Nós ficamos na casa da dona Edite, mãe do João, o João do Cumbe. “Vocês vão ficar aqui. Fiquem a vontade, se troquem e vão pra Associação porque está tendo oficina lá no mangue e nós vamos levar vocês para lá”, disse o João, que carrega o Cumbe no nome, por ter sido uma das primeiras lideranças na luta pela defesa do território e contra o racismo ambiental praticado na região.
A nossa primeira atividade foi fazer um passeio de barco pelas gamboas do rio Jaguaribe até alcançar um braço do mangue, onde dezenas de pessoas estavam reunidas. Em um banco de areia, lá no meio do rio, era possível ver alguns participantes aprendendo a pescar de tarrafa, uma das práticas tradicionais do território. No mangue, ágeis catadores ensinavam na oficina de pescar caranguejo. Até os mais ressabiados colocaram os corpos na lama para catar um dos crustáceos mais apreciados pelo cearense. Um pouco mais para o lado, perto da área de banho, uma tenda servia como cozinha para preparar os alimentos que chegavam do rio. Ostras, caranguejos, peixes, sururus, búzios, tudo generosamente compartilhado com todos que esperaram para viver essa imersão de cultura e história. Foram dois anos sem a presença do público no festival, por conta da pandemia.
Em outra parte do mangue, uma roda das mulheres do Rio Jaguaribe celebrou a existência de uma rede de pescadoras, marisqueiras e quilombolas, unidas pelas águas, que atuam na linha de frente em defesa da existência de suas comunidades e dos inúmeros saberes dos povos tradicionais, da Chapada à Foz do Jaguaribe. Em uma das diversas falas potentes de mulheres, ressoou em mim, a da Cleomar, marisqueira, presidente da Associação. “Quando eu escutava dizer que as mulheres do Cumbe eram guerreiras, eu me questionava, sou eu? Eu sou essa guerreira? Não conseguia me reconhecer assim, mas foi preciso, porque a estratégia deles é nos dividir para conquistar nosso território. E esse território é meu, eu cresci aqui e tenho afeto pelo meu lugar,” disse com a voz embargada.
Mas a re-existência para preservar a história e a cultura da comunidade do Cumbe é antiga. Todos são filhos e netos de pescadores e pescadoras. São os donos da terra, cuidam do território e respeitam seus ancestrais. O festival é um momento para conscientizar as pessoas da cidade e convocá-las para a defesa do ecossistema dos manguezais e dos povos tradicionais. O nome da comunidade faz referência aos espaços onde os escravos africanos organizaram suas lutas à época do Brasil colônia. A história e a cultura alimentar da comunidade foram apresentadas e debatidas nas apresentações culturais, atividades e rodas de conversa que fizeram parte da programação durante os três dias do evento.
Teve também competição com os mestres do mangue para premiar quem pescava mais caranguejo. Os prêmios, em pouco dinheiro doado por um comerciante local, são uma forma de reconhecer o trabalho árduo dos pescadores. “É muito difícil a gente conseguir vender por 1 real cada caranguejo do Cumbe, o mesmo que chega nas barracas de praia, por 8, 9 reais. Cadê os atravessadores que não estão aqui para ajudar a reconhecer nossos mestres do mangue? Sem mangue, não tem caranguejo na praia”, ressaltou o João, no meio da entrega da premiação. Em 30 minutos, sete competidores trouxeram 391 caranguejos que foram transformados em uma deliciosa e farta caranguejada para todo mundo. “Para vocês terem uma pequena noção da riqueza do nosso mangue. Vocês estão vendo que os caranguejos são pequenos, o mangue está maltratado, imagine se ele fosse preservado, quantos caranguejos, nossos mestres teriam trazido aqui hoje”, disse Ronaldo Gonzaga, o Ronaldo do Cumbe, outra forte liderança dos quilombolas.
As refeições, para lá de fartas, tiveram poder ainda mais agregador. Uma mistura de sabores que ouro nenhum no mundo poderia deixar mais rica. Por vezes, vi minha filha agregada às crianças da comunidade, explorando o território vivo, tomando banho de rio e com olhos atentos à dança do caranguejo, ao samba de roda, aos caminhos da duna para ver o pôr do sol, questionando os enormes cataventos ao fundo das paisagens. Olhos curiosos também miravam a pequena Ellen, de 11 anos. Onze anos de uma vida imersa na luta e na gratidão por viver livre em uma comunidade acolhedora e reluzente. “Eu quero ser advogada. Vou ajudar na luta pelo meu território”, disse, me fazendo encher os olhos d 'água e o coração de certeza que a encontrarei outras vezes. Assim como, Michell que tem 12 anos e catou 12 caranguejos na competição que o consagrou como mestre mirim.
No sábado à noite, o clima era de total integração. Uma mistura de vivências que tomou conta do arrasta pé no salão, unindo povos de todas as espécies em um pedaço da história onde a natureza insiste em se mostrar. O Cumbe foi terra de engenho, terra de escravidão e segue re-existindo e resignficando suas batalhas em nome da sobrevivência e contra uma justiça opressora que tenta apagar sua memória e a identidade de todo um povo. Em recente decisão, uma violência jurídica, fruto do racismo institucional, presente na justiça do Ceará, anulou o processo administrativo de demarcação e titulação do território, realizado pelo INCRA. Mais uma amostra das constantes batalhas que os povos tradicionais precisam enfrentar. Nesse contexto de injustiças enraizadas, à volta para casa nos fez refletir sobre uma verdade escancarada no Festival do Mangue: Essa luta é de todos nós.
Edição: Camila Garcia