Sabe aquela feijoada dos domingos? E aquela farofinha, que acompanha o cardápio e enche de alegria as refeições país afora? Você pode até nem saber, mas diversos pratos que compõem a culinária brasileira integram a imensa variedade de saberes e sabores que, para muito além de comida afetiva, fazem parte da chamada culinária ancestral.
Culinária ancestral é aquela que passa de geração em geração e é símbolo de resistência, tanto que nas diversas religiões de matriz africana elas também foram alçadas a condição de comida ritualística, aquela oferecida aos orixás, como explica Mãe Kelma, umbandista e pesquisadora da cultura afrobrasileira e de matriz africana: “a comida, ela nos remete dentro dos candomblés, a um processo de resistência dessas comunidades e um processo de fortalecimento da identidade da matriz africana. Eu estou falando aí de uma comida que você oferece pra esse orixá e ao mesmo tempo é uma comida que alimenta a nossa comunidade”.
Uma das mais famosas é o acarajé. Mas a variedade desse cardápio, que transita da mesa da população brasileira à mesa dos santos, é grande. É a comida como forma de mediação entre o mundo material, que é o nosso, com o mundo imaterial, que é o dos ancestrais e orixás: “então muitas das comidas que hoje a gente considera comidas afrobrasileiras, são comidas que nascem dentro dos candomblés como resignificações de comidas que são feitas até hoje no continente africano”, reitera a pesquisadora.
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A chefe de cozinha Dida Carneiro, entusiasta da cozinha ancestral, da comida de afeto e ritualística, explica como, no seu modo de ver, é possível apontar os caminhos que levaram ao apagamento e colonização do que vai no nosso prato: “durante muito tempo falar de cozinha ancestral era como símbolo de pobreza e fome, né? Porque normalmente as comidas ancestrais, elas vem da resistência mesmo, o mucunzá que é o milho com água, depois foi vindo com o leite. Pratos que eram pratos realmente da necessidade, e eu percebia que as pessoas tinham vergonha de falar que gostavam disso, porque era como se assumissem, e com vergonha, uma situação econômica”, enfatiza.
A mãe de Dida sustentou toda a família com o tabuleiro de acarajé. Tanto que a chefe resolveu levar pra dentro de sua cozinha esses elementos e ressignificar a importância da cultura alimentar brasileira que passa sim pela ancestralidade e resistência: “durante muito tempo a gente sofreu muito preconceito, muitas agressões, muitos xingamentos, entendeu? ‘Ah, macumbeira’. E aquilo ali tirou nossa família da fome, apesar de todo respeito ao orixá, à comida ritualística que é o acarajé também, porque até pipoca é ritualístico”, lembra a cozinheira, que complementa: “hoje em dia eu sinto muita alegria de ver que esse cenário tá mudando”, comemora.
São alimentos e tradições que fazem parte do nosso dia a dia, mas que muita gente ainda desconhece suas raízes, como lembra a chefe de cozinha – que também faz questão de levar estes elementos para seus cardápios, Luciana Pascoal: “a gente convive com muitas tradições das religiões africanas, desde o branco usado no réveillon, a coisa das sete ondas. A comida tá por aí também, o acarajé, por exemplo, ele foi muito importante na sobrevivência das mulheres escravizadas alforriadas na Bahia. A feijoada ela também tem uma ancestralidade que muita gente desconhece. Então isso é a mesclagem entre o que é do dia a dia, do cotidiano e a comida ancestral”, enfatiza.
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Edição: Camila Garcia