Em meio a onda de comentários xenofóbicos direcionados ao povo nordestino na internet, o presidente Bolsonaro, em sua live da última quarta-feira, associou a votação do candidato Lula (PT) na região ao analfabetismo. O ex-presidente ganhou em todos os estados do Nordeste conquistando uma vantagem de 10,96% dos votos em relação ao atual presidente e saiu vencedor em boa parte do Norte do país.
O largo placar com quase 13 milhões de votos nordestinos a favor do candidato do PT, logo deu lugar a comentários preconceituosos e ofensivos partindo de perfis bolsonaristas nas redes sociais, depois do primeiro turno das eleições de 2022, mas o fato é recorrente. Em 2010 e 2014, a eleição de Dilma Rousseff (PT) foi o estopim das ofensas e depreciações direcionadas ao povo do nordeste, em uma série de postagens, mesmo com a ex-presidente tendo vencido a primeira eleição em estados como o Rio de Janeiro e em São Paulo. Os xingamentos continuaram em 2016, com as disputas políticas que resultaram no impeachment de Dilma por supostamente fazer pedaladas fiscais, acusação a qual foi absolvida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª região em março deste ano. As provocações contra os nordestinos ganharam força em 2018, quando Fernando Haddad (PT) conseguiu levar as eleições para o segundo turno, contra Jair Bolsonaro,que acabou eleito presidente.
O aumento dos ataques em época de eleições foi constatado pela pesquisa da Safernet, uma ONG de proteção dos Direitos Humanos no ambiente digital. Um dia após o pleito do dia 2 de outubro, a Organização recebeu 348 denúncias de Xenofobia contra dez relatos do dia anterior. Com relação ao mesmo período do ano passado, o crescimento é avassalador, visto que a instituição só recebeu uma denúncia. O levantamento realizado no primeiro semestre deste ano, apontam que as denúncias de crimes que envolvem discurso de ódio na internet cresceram 67,5% no primeiro semestre de 2022 na comparação com o mesmo período de 2021. Já em relação a 2017, 2018 apresentou um crescimento de 595,5% nos registros. De 2019 para 2020, o aumento foi de 111,20%.
"O discurso de ódio se alimenta de preconceitos já enraizados no imaginário das pessoas. A discriminação contra os nordestinos é uma das manifestações desse preconceito e a gente percebe que as eleições funcionam como um gatilho. Isso é resultado da divisão política do país. Os nordestinos acabam sendo alvo de ataques porque o país tem realidades muito diferentes e isso se reflete nos resultados das urnas quando a gente ver quais candidatos tiveram mais votos no nordeste e no sudeste. O melhor antídoto contra o preconceito é informação e diálogo. Enquanto a gente não for capaz de escutar e compreender a realidade de quem é diferente de nós, dificilmente vamos conseguir conviver respeitando as diferenças", ressalta Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da Safernet.
Migração nordestina
“Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo, nóis vamo a São Paulo, viver ou morrer”. O verso da canção ‘A Triste Partida’ do poeta e repentista cearense Patativa do Assaré, ilustra a realidade de milhares de migrantes nordestinos que deixaram sua terra natal em busca de sobrevivência no sudeste do Brasil. A migração nordestina é um grande fator histórico para o país. Para o professor da Universidade Federal do Ceará e doutor em história, Frederico de Castro Neves, que estuda temas relacionados à seca, migração, movimentos e conflitos sociais, é no final do século XIX que se estabelecem as diferenças regionais. Primeiro, entre as regiões Norte e Sul. Depois, já no início do século XX, se forma a noção de Nordeste.
“O preconceito começa com a própria definição de nordestino, que tem a ver com a formação da intelectualidade paulista nos anos de 1920, que estabelecia São Paulo como a "locomotiva" do Brasil e as outras regiões como "vagões" a serem carregados pelo desenvolvimento paulista. A reação veio com Gilberto Freyre, a partir de Recife, e a definição do Nordeste como o "berço da nacionalidade". De qualquer maneira, o Nordeste passou a ser definido como uma área pobre, agrícola, seca e mestiça. É, obviamente, uma definição inteiramente arbitrária, mas que se firmou na cultura brasileira, tanto que hoje falamos de "cultura nordestina" como se fosse um dado, uma coisa imemorial, que sempre existiu”, explica o pesquisador.
O preconceito contra o nordestino também pode ser analisado no contexto racial. Em um país, onde o branco é considerado descendente de europeu, as diferenças se alargam ainda mais, elevando o regionalismo nordestino a patamares que colocam a região como uma ameaça à direita antidemocrática, pois os ataques sofridos devem ter respostas nas urnas. Para o cientista político Cleiton Monte, as reiteradas falas do atual presidente e seus eleitores contra a região podem resultar em um tiro no pé.
"A repercussão da fala do presidente Bolsonaro está sendo muito negativa e está mobilizando os nordestinos das mais diferentes tendências e movimentando as famílias de nordestinos que moram em outras regiões. Basta levar em consideração que o nordestino é o povo brasileiro que mais migra e tem um percentual muito elevado de nordestinos em São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, e isso chocou muito. Acredito que possa gerar uma onda pró -Lula, reduzindo as abstenções, trazendo voto pro Lula e beneficiando diretamente o candidato Lula" analista o especialista.
Xenofobia é crime, previsto no artigo 140 do Código Penal. Incitar discriminação a nordestinos ou a pessoas de qualquer outra região, pode resultar em reclusão de 1 a 3 anos, mais multa. Se o crime for praticado na internet, se torna qualificado e a pena varia de 2 a 5 anos de reclusão, mais multa. As denúncias do crime cometido nas redes, podem ser feitas no site denuncie.org.br, a plataforma da Safernet que atua em parceria com o Ministério Público Federal. O Disque 100, também recebe denúncias de violação dos Direitos Humanos.
Edição: Camila Garcia