Ceará

Opinião

Artigo | O reconhecimento facial não vai salvar a segurança pública do Ceará

Aos eleitores cearenses, fica o alerta de não cair em soluções fake para problemas reais

Fortaleza, CE |
" Em feira de Santana - BA, durante o carnaval de 2019, apenas 3,6% dos 903 alertas gerados pelo sistema de reconhecimento facial resultaram em mandados de prisão, ainda assim o governo decidiu expandir o sistema, com gastos superiores a R$ 660 milhões. "
" Em feira de Santana - BA, durante o carnaval de 2019, apenas 3,6% dos 903 alertas gerados pelo sistema de reconhecimento facial resultaram em mandados de prisão, ainda assim o governo decidiu expandir o sistema, com gastos superiores a R$ 660 milhões. " - Justin Sullivan/Getty Images North America/AFP

Nestas eleições, o tema da segurança pública ganha posto central na disputa de vagas ao legislativo e ao executivo, tanto em âmbito nacional quanto estadual. No Ceará, que vivencia um ciclo histórico desafiador no que tange à pauta, são vários os candidatos e as candidatas a deputado estadual, federal e ao senado que trazem a bandeira do “combate à criminalidade”, “pulso firme contra as facções criminosas” e emprego de “inteligência” e “tecnologia” como promessas de campanha. 

Na disputa para governador do estado, não é diferente. Os três candidatos com maior pontuação nas pesquisas, Elmano (PT), Capitão Wagner (União Brasil) e Roberto Cláudio (PDT), trazem muitas propostas nos seus programas de governo nesta agenda. Capitão Wagner busca destoar dos concorrentes trazendo um cabo eleitoral do FBI. Para além da já denunciada parceria fake com o órgão federal de segurança estadunidense noticiado por reportagem do The Intercept, outra coisa chama atenção nas propostas de Wagner para a segurança: ele promete implantar sistemas de reconhecimento facial em instituições públicas e privadas para identificar criminosos.

A quatro dias das eleições que vão definir o futuro do país e do nosso estado, Wagner esconde nessa proposta algumas informações relevantes que trazemos abaixo. 

1. Já que usa o sistema de segurança público americano como exemplar no seu programa, o candidato deve também lembrar que várias cidades americanas como São Francisco e Oakland, na Califórnia, e Boston, no estado de Massachusetts, já aprovaram o banimento do uso do reconhecimento facial, após atestarem o potencial discriminatório e racista desta tecnologia. Em 2021, o Parlamento Europeu também votou a favor do banimento.

2. A tecnologia de reconhecimento facial, além de potencialmente racista, é transfóbica. 
Isso ocorre porque as tecnologias de reconhecimento facial dependem da classificação dos corpos. Isso pode ocorrer em função de aspectos como sexo e gênero, por exemplo, trazendo uma visão binária e baseada em estereótipos que não reconhecem a diversidade de corpos, identidades e expressões – quadro ainda mais preocupante no Brasil, país que mais mata pessoas trans, e no Ceará, quarto estado do país no número de mortes motivadas pela transfobia. Um estudo da Rede de Observatórios de Segurança monitorou prisões e abordagens feitas com este tipo de tecnologia nos estados da Bahia, Ceará, Paraíba, Rio de Janeiro e Santa Catarina, entre março e outubro de 2019. Nos casos em que havia informação sobre raça, 90,5% das abordagens tinham como alvo pessoas negras.

3.  A tecnologia de reconhecimento facial é onerosa e imprecisa. As arbitrariedades e violações oriundas do uso da tecnologia são concretas.  Um exemplo retratado no documentário Coded Bias, é o uso do reconhecimento facial pela polícia do Reino Unido e a associação incorreta (até o ano de 2018) de 98% dos rostos apontados como correspondentes a pessoas foragidas.  No Brasil, as cidades de Feira de Santana - BA e Rio de Janeiro - RJ - precursoras no uso do reconhecimento facial para fins de segurança pública - são constantemente criticadas pelo uso massivo e errôneo destas tecnologias.  No caso da cidade baiana, durante o carnaval de 2019, apenas 3,6% dos 903¹  alertas gerados pelo sistema de reconhecimento facial resultaram em mandados de prisão, ainda assim o governo decidiu expandir o sistema, com gastos superiores a R$ 660 milhões, utilizando o reconhecimento facial como vitrine de sua política de segurança pública. Já no Rio de Janeiro, em um projeto-piloto, a Secretaria de Estado de Polícia Militar - SEPM admitiu que dentre os onze casos de pessoas detidas com o uso da tecnologia de reconhecimento facial nas partidas do Maracanã, sete foram erros da máquina, ou seja: falsos positivos. Desta forma, o sistema errou em 63% dos casos². Além disso, nos quatro meses correspondentes à segunda fase do projeto, não foram registradas reduções nos principais indicadores de criminalidade, as câmeras instaladas pelo Governo do Estado na cidade não cumpriram a função de melhorar a segurança e, hoje em dia, encontram-se desativadas.

4.  A tecnologia de reconhecimento facial aplicada à segurança pública gera grande risco à proteção dos nossos dados pessoais e à nossa privacidade. Os sistemas de reconhecimento facial contam com poucos recursos de transparência, tanto no que se refere ao funcionamento do algoritmo quanto a questões relacionadas à guarda e manejo dos dados biométricos coletados. Além disso, muitas vezes a implantação destes mecanismos se dá por parcerias público-privadas em que se aumenta a opacidade e abrem-se riscos para usos comerciais dos dados coletados.

Por conta deste cenário, organizações da sociedade civil, pesquisadoras/es, ativistas, operadores/as de direito, gestores públicos assinam manifesto - aberto à adesão - exigindo o banimento do reconhecimento facial para fins de segurança pública no Brasil. Segundo as organizações da campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira, a luta pelo banimento é motivada pelas evidências de seu uso abusivo e pouco transparente e pela “capacidade de identificar individualmente e rastrear pessoas que mina direitos como os de privacidade e proteção de dados, de liberdade de expressão e de reunião, de igualdade e de não-discriminação”. Exemplos nos EUA e na China já atestam usos desta tecnologia para monitorar e identificar manifestantes violando o direito à livre associação e manifestação. 

Apesar de apenas Wagner enfatizar abertamente o emprego das tecnologias de reconhecimento facial, tanto Elmano quanto Roberto Cláudio apontam de forma genérica em seus planos de governo a utilização de sistemas de inteligência e dados para coibir a criminalidade. Estejamos atentos para que a proposta do Capitão não se banalize e seja adotada pelas outras candidaturas na disputa pela atenção do eleitor.

Aos eleitores cearenses, fica o alerta de não cair em soluções fake para problemas reais. Que neste domingo, façamos nossa opção de voto sem as armadilhas de marketing que trazem soluções mágicas para problemas complexos e que, pior, abrem margem para aprofundar desigualdades estruturais que já enfrentamos em nosso estado como o racismo e a LGBTQIA+fobia.

¹ FALCÃO, Cíntia. Lentes racistas: Rui Costa está transformando a Bahia em um laboratório de vigilância com reconhecimento facial. The Intercept Brasil, 2021. Disponível em: https://theintercept.com/2021/09/20/rui-costa-esta-transformando-a-bahia-em-um-laboratorio-de-vigilancia-com-reconhecimento-facial/ 

² NUNES, Pablo. Um Rio de câmeras com olhos seletivos: Uso do reconhecimento facial pela polícia fluminense. O Panóptico, 2022. Disponível em: https://opanoptico.com.br/Caso/um-rio-de-cameras-com-olhos-seletivos-uso-do-reconhecimento-facial-pela-policia-fluminense/ 

*Iara Moura é jornalista, coordenadora do Intervozes e integra a Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Camila Garcia