Ceará

FOME

Artigo | Ceará: Terra da Fome

2,4 milhões de cearenses sofrem a dor da fome de forma mais aguda e acordam sem ter o que comer.

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Em todo o país, cerca de 33 milhões de brasileiros vivem em situação de fome, aumento de 15,5% se comparado com 2020 - Agência Brasil

Foi divulgado hoje (14), o Relatório do II VIGISAN que revela os dados da fome em cada estado brasileiro. Não há surpresas quanto o aumento da fome no Brasil, mas há bastante que discutir sobre como a fome se territorializou nos estados, e para nós cearenses, é necessário entender o grau da fome que se alastrou em nossa terra.

De acordo com os dados divulgados no Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, 2,4 milhões de cearenses sofrem a dor da fome de forma mais aguda. São 2,4 milhões de pessoas que todos os dias acordam sem ter o que comer, seja café da manhã, almoço ou jantar. Essa quantidade de pessoas é capaz de lotar na capacidade máxima o Estádio Castelão 38 vezes.

Já as pessoas que sentem a fome de forma moderada ou leve (se é que é possível descrever dessa forma), são pessoas que foram obrigadas a reduzir a quantidade de comida, mudaram os alimentos que consumiam por não conseguirem mais ter acesso, possuem uma preocupação constante em relação ao futuro e a qualidade da comida que irão colocar na mesa. Os números apontam mais da metade da população cearense com grau de insegurança alimentar leve ou moderada, cerca de 55,6% do Estado do Ceará. Se somarmos todos estes números chegaremos ao resultado mais chocante, triste e desumano do retrato da fome no Ceará: a insegurança alimentar atinge 81,8% do domicílios cearenses.

A fome adentrou no estado e fez morada. Virou de casa em casa a vida dos pobres que pisam nesse chão tão fértil. A terra da Luz agora é a terra da fome e não precisa muito para saber disto, afinal, a fome é tão visível, tão palpável, tão familiar para nós, que enquanto escrevo lembro de vários conhecidos, e enquanto você lê, lembra de muitos outros. É um exercício doloroso e urgente: dar cara, nome e voz a esses números tão cruéis.

Adentrando nos detalhes da pesquisa os resultados se mostram ainda mais dilacerantes: o retrato da fome no Ceará é fruto de uma desigualdade socioeconômica latente e estrutural. Renda é um dos principais causadores de fome no Estado com 65% dos domicílios em situação de fome recebendo até meio salário mínimo per capta mensal. A fome atinge majoritariamente os desempregados (66%), os trabalhadores autônomos (41%) e até mesmo os trabalhadores formais (30%). Quando falamos da cor, os povos negros são os mais afetados pela violência da fome no Estado. De acordo com o estudo realizado pela II VIGISAN a característica socioeconômica dos domicílios cearenses é em sua maioria negra (80%), chefiado por mulheres (63%), trabalhadores (as) autônomos (as) ou que exercem outro tipo de atividade não especificada. Mães, pretas, com crianças menores de 10 anos, trabalhando em todo tipo de atividade informal para amenizar a fome violenta que se espalha feito fogo em mato seco.

A terra de Chico da Matilde vivencia momentos que somente foram vistos nas gerações anteriores as dos nossos jovens. Os filhos da seca, revivem lembranças dolorosas na carne e no psicológico. Gente humilhada num cotidiano severo que faz questão de diminuir sua humanidade, enxergá-los como sombras, vultos da paisagem, menores que cachorro, o lixo da nata do lixo, o lixo da aldeia que há muito tempo é invisível.

A fome atingiu em menor grau os agricultores. A terra do povo das mãos calejadas tem salvado ainda que de forma sofrida, a vida das famílias cearenses. A agricultura familiar resiste valentemente a rajada de fome que alastra a cidade e nesta época já se colheu a mandioca, já se colheu o feijão, o milho e já se fez a farinha. Agora chegou a época do caju e da manga fazer lama no quintal, nas plantações das agroindústrias, nas comunidades tradicionais, nos campos coletivos, nos assentamentos e nos povoados. Afinal, se o campo não planta, a cidade não janta.

O Governo Federal, este que nunca esteve preocupado com os corpos famintos espalhados pelo país, que riu das 700 mil mortes por Covid-19, esta instituição de escárnio, violência e genocídio, não foi capaz (e nem quis) de diminuir o grau de fome no país via Auxílio Emergencial e Auxílio Brasil. O antigo Bolsa Família agora Auxílio Brasil atende ou atendeu em algum momento mais de 51% dos lares cearenses, ressaltando que mesmo nas famílias que recebem o benefício, a fome ainda encontra a porta aberta, entra e senta à mesa. De acordo com reportagem feita pelo Diário do Nordeste, há pelo menos 45 mil famílias na lista de espera do Auxílio Brasil só em Fortaleza.

Nos interiores a fome é ainda pior. Segundo o mapa interativo da extrema pobreza no Estado do Ceará, criado pelo Diário do Nordeste a partir de dados Ministério da Cidadania (2022), os municípios cearenses com maior grau de extrema pobreza e consequentemente, fome, são de acordo com suas populações, Antonina do Norte com 71% da população em extrema pobreza, seguida por Penaforte com 68% e Trairi com 67% da população cadastrados no CadÚnico como “em situação de extrema pobreza”. A cesta básica em Fortaleza está custando 626 reais, segundo o DIEESE.

As políticas do Governo do Estado do Ceará para redução da pobreza foram insuficientes para lidar com o grau de fome que se formou. A despeito da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) ter criado políticas como o Vale Gás, Mais Nutrição (doação de alimentos); Cartão Mais Infância Ceará (transferência de renda); AvanCE (bolsas estudantis), sem uma amplitude maior na cobertura dos povos em estado de fome e, sobretudo, sem apoio do Governo Federal no combate à pobreza e miséria estruturais e frutos de desigualdades históricas que se intensificaram ainda mais durante a pandemia, eliminar a fome no Ceará torna-se cada vez mais difícil.

A fome tem pressa. Agoniza. Lamenta. A fome não é fruto da escassez alimentar, a fome é uma escolha política. Nestas eleições, priorize os candidatos que possuam propostas de segurança alimentar, faça parte da escolha por alimentação digna, no campo e na cidade.

*Monalisa Lustosa Nascimento é Mestranda em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (IPPRI/UNESP).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.

Edição: Camila Garcia