Um retorno ao passado. Esta é a sensação de quem passeia por entre o acervo que guarda um pedaço da história da ferrovia que um dia cortou o Ceará de norte a sul. A estrada de ferro teve grande importância para o desenvolvimento do Estado: encurtou distâncias, facilitou as comunicações e impulsionou a economia, além de ampliar, em quantidade e velocidade, o transporte da produção agrícola e pecuária - do sertão para a capital, e de produtos industrializados no caminho inverso - de Fortaleza para o interior. E essa história começa ainda na época do Império, em 1870.
A ferrovia foi inaugurada por trechos. O primeiro trem saiu da estação João Felipe e os seus pouco mais 7 km quilômetros de trilhos interligava o centro ao bairro Parangaba. O processo de instalação da ferrovia passou por diversas administrações. Foram necessários 53 anos para finalizar os 599 km que ligaria, finalmente, Fortaleza à cidade do Crato, na região sul do estado.
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O historiador, Tayrone Cândido, é quem traz um pouco do contexto em que foram criadas as ferrovias por aqui: “Elas começaram a ser construídas no contexto da grande expansão de ferrovias no mundo todo, no século XIX, especialmente na segunda metade daquele século. As ferrovias estavam muito associadas à ideia do progresso, da modernização das sociedades, é um incremento pra economia capitalista. Ela inicia sua construção pelo ano de 1872 com o primeiro objetivo de ligar, de uma maneira mais eficaz, a capital do Ceará, Fortaleza, com um centro de produção de café, que era Baturité, cortando uma região que também propiciava a produção, sobretudo, do algodão’’, explica.
Seu Hamilton Pereira foi funcionário da R.F.F.SA, empresa que durante muitos anos foi responsável por colocar os trens, literalmente, nos trilhos. Mas desde criança ele já utilizava o veículo como meio de transporte e guarda muitas lembranças e histórias dessa época: “a principal lembrança é das minhas viagens para o interior, que iam até, por exemplo, Sobral, Crato. Eram uns carros confortáveis, o sonho azul, tinha ar condicionado, música – e também tinha os outros trens mais antigos - . A gente ia vendo aquelas paisagens do sertão, os animais, as plantas, a água, principalmente no tempo do inverno, era ainda mais bonito’’, relembra.
Com os cabelos grisalhos protegidos por um boné, ele caminha por onde, outrora, caminhavam os passageiros à espera da condução e, como num exercício de teletransporte, desta vez ele retoma os vagões da sua própria memória – é como se, naquele instante, junto com ele, pudéssemos vislumbrar o passado: “Eu vou fechar os olhos e vou voltar à década de 50/60. Estou vendo tudo direitinho, os trens funcionando, o barulho das locomotivas, os apitos, o pessoal pegando o trem e as cores das edificações. O pessoal só falando comigo e eu dizendo – boa viagem, até breve, volte sempre. Era a história que a gente ouvia aqui, – ó as malas, senhor, a minha mala. Então eu ouço isso aí tudinho, com os meus olhos fechados e se eu abro agora, vejo o modernismo’’. Seu Hamilton ainda se espanta com as novas vestes que encaparam aos vestígios do tempo. Após a reforma da estação, a estrutura ainda parece a mesma, “mas nesse pedaço aqui não era esse teto, não, era telha. Essa iluminação chique aí, num era assim não”, comenta o senhor simpático como quem protesta, mas também como quem está feliz de ver que, pelo menos esse pedacinho da história das ferrovias, ainda vai ter muito o que contar.
Seu Marcos Cabral, outro antigo engenheiro, também segue o mesmo trilho da história: “Eu nasci nessa zona aqui todinha ferroviária, no quintal de casa já eram os trilhos, já era a locomotiva, já era o vagão, e eu já brincava por ali, junto com outros colegas filhos de ferroviários também”. Marcos conta ainda das longas viagens que sua família fazia, por conta do ofício do pai: “Nessa época quando criança a gente viajava a serviço, meu pai é que estava a serviço, e nós, família, normalmente acompanhava, pois o vagão era um vagão dormitório, a gente passava da cama da casa, pra cama do vagão”, conta.
Mas para muito além da expansão e progresso que as linhas férreas trouxeram, existia outro lado da história que nem todo mundo conhece, como explica o Tayrone: “então você vê muito no Brasil essas ferrovias serem louvadas e comemoradas como símbolos do progresso, mas muitas vezes quem estava por trás das iniciativas da construção dessas ferrovias eram essas elites agrárias, exportadoras, proprietários de escravos. No Ceará não foi diferente nesse aspecto”.
O historiador explica ainda que com a grande seca que ocorreu no Ceará, em 1877, no final de século XIX, a expansão das ferrovias tinham ainda outros objetivos para além do chamado progresso: “a expansão das ferrovias estava atrelada as próprias políticas de socorros públicos, que passam a nortear a construção de diversos empreendimentos considerados estratégicos para trazer o que, na época, eles chamavam de melhoramentos materiais – estradas, ferrovias, açudes –, ao mesmo tempo que visavam com essas obras ocupar [nas frentes de trabalho] a grande multidão de retirantes que, em função das próprias secas, eram obrigados a migrar’’.
Diferente de muitos outros trechos da linha férrea, que com o tempo caíram em desuso, a primeira estação do Ceará, localizada no centro da cidade, foi restaurada para assumir novas finalidades e também rebatizada: de Estação João Felipe passou a se chamar Estação das Artes. Hoje, boa parte do prédio já está em funcionamento com uma série de programas culturais. E até o final deste ano, deve abrigar ainda a nova sede do Museu Ferroviário, onde o público terá a oportunidade de ver e conhecer um pouquinho mais sobre essa própria história, como explica a Cristina Holanda, diretora do museu: “é um acervo muito diverso. É constituído por pinturas, mobiliários, equipamentos, e permite contar, sob vários ângulos, a memória da ferrovia do Ceará, não só a memória da ferrovia no sentido da máquina, do trem, mas das pessoas que também viveram a ferrovia, que trabalharam nela ou foram passageiros”.
História que fica guardada na memória e, principalmente, no coração de quem vivenciou o período de perto: “Quem tem o sangue ferroviário não sai mais nunca. O sangue né vermelho, não, é ferrugem”, conta seu Marcos apontando alegremente para as próprias veias de onde corre o sangue cor de ferro.
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Edição: Camila Garcia