No último 11 de agosto, uma barqueata de mulheres povoou a foz do Rio Jaguaribe. De diferentes direções chegaram barcos, cheios de mulheres, e se uniram em uma croa, banco de areia revelado pela maré baixa. Lá, elas entoaram em coro, a união em defesa de seus corpos e territórios, sejam estes das mulheres - cis, trans e travestis -, dos manguezais, das dunas, dos rios, mares, das terras e/ou chapadas. Uniram-se aí, principalmente, contra todo tipo de violência causada pelos grandes empreendimentos que gradativamente cercam, destroem e alteram seus territórios. Em meio ao rio, elas ergueram faixas e bandeiras, demarcando os sentidos do ato.
Defender a si e ao território e natureza conjuntamente, é marca comum das lutas de todas essas mulheres que se juntam no rio. Como reforça Sirley Ferreira, vinda do Sergipe, representando o Movimento de Mulheres Camponesas: “Não podemos separar a violência doméstica que sofremos em nossos corpos, daquela causada pelos grandes projetos que chegam com falsas promessas, divulgando um falso progresso e falso desenvolvimento. A gente está aqui com companheiras que sofrem essas violências no seu dia-a-dia e nos seus corpos - ver o mangue morrendo, ver a terra sendo degradada [...]. Esse desenvolvimento, de desenvolvimento não tem nada, ele gera é morte, gera destruição, gera miséria, expulsão dos povos de seu território, em que nasceram e seus antepassados viveram. Nós mulheres, estamos aqui firmes, para dizer não ao racismo, não ao capitalismo, ao patriarcado e a esse projeto de morte; e para afirmar a vida em todos os sentidos. A gente se entende como natureza, então defender a natureza, a terra, as águas, o mangue, é defender a nossa vida. Nós não vamos sucumbir.”
O ato se dá em meio a um encontro chamado “1º Intercâmbio entre Mulheres em defesa do território-corpo-terra-águas”, que em formato de caravana, visitou o Acampamento Zé Maria Do Tomé, a Comunidade do Tomé, em Limoeiro do Norte e proximidades de Quixeré (CE). Em seguida, visitaram o Quilombo do Cumbe no Aracati e a comunidade do Jardim no Fortim (CE). “O sentido foi estar entre mulheres refletindo sobre questões pulsantes nesses territórios e na vida das mulheres que ali (re)existem, como energia, clima, agronegócio, agroecologia, pesca e mariscagem, abordando também as violências étnicas e raciais e de gênero.”, nos conta Ana Nobre, assessora de campo do Instituto Terramar e uma das organizadoras do encontro.
Uma faixa erguida no rio carrega uma das pautas centrais do Acampamento Zé Maria do Tomé:" Mulheres unidas e na resistência, não ao despejo do acampamento Zé Maria do Tomé!" Todas as mulheres presentes se unem com força cantando “A chapada é nossa, a chapada é do povo; É só lutando que será nossa de novo!”. Os acampados e acampadas vivem sob constante insegurança territorial, uma vez que existe uma ordem de despejo da qual a comunidade não pode recorrer judicialmente. Até outubro o acampamento segue protegido pela ADPF 828, que proíbe o despejo em tempos de pandemia.
Existe ainda, a esperança que os órgãos públicos responsáveis proponham uma solução para o conflito, regularizando o direito das famílias acampadas. A comunidade precisa de todo tipo de apoio para garantir o seu direito à permanência e à vida no Acampamento Zé Maria do Tomé. Em plenária com as mulheres visitantes de outros territórios, Luzia, acampada há 8 anos, nos explicita os contrastes entre agronegócio e agricultura familiar do acampamento: “Alguém me perguntou o que o agronegócio aqui plantava - O que eles plantam mais aqui é veneno. [...] Já aqui (no Acampamento), tem muita coisa que produzimos. Uma vez fizemos uma lista pra levar pra escola e listamos 37 diversidades e mais de 70 culturas.”
Ana Paula, da direção do MST responsável por essa região, nos fala das reivindicações dos Sem Terra do acampamento: “aqui é uma área do Dnocs, uma área federal. Então que seja um assentamento, reconhecido pelo Incra, com todas as políticas públicas que um assentamento de reforma agrária tem direito. Assistência técnica, creche, educação… O processo de negociação foi interrompido pelo Dnocs após o golpe na presidenta Dilma Rousseff. Depois disso, eles não sentam mais conosco, não tem proposta para essa área. Apesar de estarmos em área do Dnocs, quem move a ordem de despejo é a FAPIJA (Federação das Associações do Perímetro Irrigado Jaguaribe Apodi). É uma definição política tirar os sem terra, e nós definimos também politicamente em assembleia, que não arredamos o pé, que a chapada é nossa, que vai ter sim acampamento irrigado das famílias sem terra na Chapada do Apodi.”
A caravana culminou sua viagem na região do Quilombo do Cumbe e do Jardim, o que significa refletir sobre os acúmulos de negligência que o rio Jaguaribe vai carregando até sua foz, e ao que a biodiversidade precisa resistir para seguir produzindo vida e proteção às comunidades ali presentes há gerações. Tiana, uma jovem artista quilombola do Cumbe, compartilha: “não consigo imaginar o Cumbe sem Manguezal. O Mangue é o berço da vida. O rio está cheio de frutos e sementes. Então quando a carcinicultura destrói o mangue, não está destruindo só a água - são vidas, e muitas… é alimento, lá tá tudo da nossa comunidade.”
Processo anterior
O “1º Intercâmbio entre Mulheres em defesa do território-corpo-terra-águas na Chapada do Apodi e na foz do Jaguaribe” é um desdobramento do “1° Encontro das Marisqueiras do Rio Jaguaribe” e do curso de extensão “Mulheres Em Defesa Do Território-Corpo-Terra”. Este primeiro foi realizado no Quilombo do Cumbe pelo Instituto Terramar e o Naterra/UECE junto às mulheres das comunidades do Quilombo do Cumbe, Jardim e Canavieira, em abril de 2022. Teve por foco o autocuidado entre mulheres em um contexto de aumento de óbitos tanto pela pandemia quanto pela violência e injustiças ambientais acumuladas na foz do rio e nos territórios tradicionais pesqueiros. Os principais causadores dessa degradação socioambiental são o Estado e a iniciativa privada que investem em atividades de altos impactos: como a carcinicultura, o turismo de massa, os parques eólicos, o agronegócio e a exploração do petróleo.
O curso de extensão “Mulheres em Defesa do Território-Corpo-Terra” é uma iniciativa da Coletiva Diálogos Feministas, da Fundação Rosa Luxemburgo e do CPDA/UFFRJ. Está acontecendo desde 27 de junho e vai até 12 de setembro de 2022, com palestras online, encontros virtuais e visitas de campo. A formação é um espaço de troca de saberes entre mulheres de organizações comunitárias, movimentos sociais e da academia. Promove a análise de violações de direitos humanos em decorrência de projetos minero-energéticos, da expansão de energia, das concessões florestais e da política fundiária no Brasil, com especial atenção ao debate de gênero e raça.
A programação desse novo intercâmbio contou com rodas de conversa, visitas a quintais produtivos do Acampamento Sem Terra, debates em torno do Memorial Zé Maria do Tomé - símbolo da luta fundiária da região da Chapada do Apodi - e culminou na Caravana pelas águas do Rio Jaguaribe, pelo trajeto das marisqueiras da foz, e no ato de expressão simbólica de afeto e defesa pelo Rio Jaguaribe visibilizando a existência e importância das mulheres na preservação do meio ambiente, clima e modos de vida ancestrais construtores do bem viver.
Foram várias entidades/coletivos que realizaram o evento: Grupo de Mulheres “Mãos que Criam” do Acampamento Zé Maria do Tomé; Grupo “Flor do Mussambê” da Comunidade do Tomé; Mulheres da Comunidade Jardim; Mulheres e Associação Quilombola do Cumbe; Mulheres do Sítio Canavieira; Instituto Terramar; NATERRA - Grupo de Pesquisa e Articulação Campo, Terra e Território da UECE; Coletivo Diálogos Feministas; Fundação Rosa Luxemburgo, e Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - CPDA/UFRRJ. Estavam também presentes: Comissão Pastoral da Terra (CPT - TO), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC - SE), Sempreviva Organização Feminista (SOF - SP), Justiça nos trilhos (MA), Comunidade tradicional do Horto (RJ), GT Mulheres de Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Faculdade de Educação de Universidade Federal do Ceará e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) aqui do Ceará.
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Edição: Camila Garcia