De uma das janelas do lugar onde moro, avisto uma paisagem que ainda se mantém livre de prédios ou obras em construção na cidade que “parece uma ruína”, como se referiu a Fortaleza uma artista urbana local, em uma de nossas conversas para minha pesquisa1. Esta parte do apartamento em que estou, dá para uma rua tranquila de casas. Se me esticar um pouco e ficar na ponta dos pés, consigo olhar para o interior de uma residência que foi abandonada “do dia para a noite”. Percebo as folhas que se acumulam na área da frente, a janela esquecida entreaberta e a árvore na calçada que cresce assustadoramente livre de podas. Recentemente, reparei que retiraram os portões e em seu lugar, taparam o acesso à casa com uma parede de tijolos. Agora não há mais como entrar ou sair. Deixo-me especular quanto ao que fez a casa ser deixada assim: dívidas, medo ou vontade de mudança?
Cultivo uma rotina de gastar tempo nessa janela. Gosto de devanear e imaginar como são os interiores daquelas casas, o que as pessoas fazem até tarde da noite com luzes acesas, que tipo de refeição vai ser preparada pelas compras do supermercado, o que está sendo visto na tela do celular, o que pensam antes de dormir ou qual música toca nos fones de ouvido. Que histórias do seu dia de trabalho tem para contar o taxista que chega tarde da noite acompanhado do segurança particular da rua e sua sirene inconfundível e irritante, que lugares conheceu a mulher que passeia com o cachorro pela manhã, quantas saudades acumula o casal de velhos que recebe os filhos no portão aos domingos, sobre o que conversam o grupo de jovens que às sextas-feiras colocam Marília Mendonça no volume suficientemente alto para lamentar as partidas precoces e incompreensíveis.
Dia desses, olhando pela janela, relembrei um diálogo que tive com um casal de amigos em um destes encontros fortuitos e apressados. Comentamos como vivemos em uma lógica em que nossa vontade de falar besteira, de devanear e de ócio são tomadas de pronto pelas metas a serem cumpridas, os prazos que estão próximos de acabar, as compras que precisam ser feitas e outras tantas obrigações de uma lista de deveres a serem seguidos. Ocorreu-me que, enquanto urgências da vida cotidiana precisam ser atendidas, não fazia sentido dar espaço para uma desimportância2 como a imaginação a beira de uma janela.
Diariamente, atravesso a cidade para dar aulas em um território em quase tudo diferente do meu e da paisagem da minha janela. Quando proponho exercícios de “imaginação sociológica”, percebo certa dificuldade entre meus alunos em projetar, construir, mesmo que mentalmente, outros cenários e situações. Repetidas vezes escuto como resposta que o que esperam do futuro é estarem vivos. Aquela pergunta de “o que você quer ser quando crescer” parece inapropriada. Não morrer é prioridade e manter-se vivo é urgente no país da necropolítica, das desigualdades e da violência.
Se repararmos com cuidado, as demandas de sobrevivência se sobrepõe a outras situações cotidianas. Afinal, como “perder tempo” na janela se os boletos vencem, ainda não foi decretado o fim da pandemia de covid-19, a CNH precisa ser renovada, os prazos findam, as refeições precisam ser preparadas, a pontualidade deve ser seguida, o dinheiro acaba com tantos dias ainda por riscar no calendário, o preço da gasolina é assustador e as idas ao supermercado estão cada vez mais angustiantes. A quem ou quando é permitido sonhar ou imaginar, então?
A literatura, o cinema, a música e artes em geral estão repletas de metáforas para a “janela da alma”3. É que olhos e janelas tem um quê de abertura, passagem, canal para algo que não tocamos ou vemos e, no entanto, existe. A imaginação é um modo de conhecer o mundo e arrisco dizer, um termômetro da vida cotidiana, pois próximo do sonho. Não somente aquele que acessamos quando dormimos, mas o outro, aquele que experimentamos acordados e que é um caminho do desejo ou nossa teimosia de imaginar a vida que queremos e merecemos.
O sonho e a imaginação são capazes de criar algo que ainda não existe, como uma existência coletiva onde a acumulação ou manutenção da vida não sejam apenas responsabilidades individuais. Sidarta Ribeiro4, pesquisador e neurocientista, diz que “devaneio é o sonho desperto” e é bem acordada, mas ainda assim sonhando, que espero ver meus alunos respondendo que daqui há alguns anos se imaginam vivos, mas também felizes, criando, viajando, fazendo o que bem quiserem, sem medo de ser quem são. Ou que possamos gastar tempo na janela, imaginar possíveis, esperançar – para usar uma palavra cara a Paulo Freire – outro país e mundo, como atividade rotineira.
Lá pela década de 1960 estudantes escreveram nos muros em protesto que “a imaginação toma o poder”. Desconfio que a rebeldia em imaginar outros modos de vida seja nossa saída ou arma. Sonho e utopia não deveriam ser supérfluos, ao contrário, poderiam fazer parte da nossa cesta básica, tal qual o amor, como argumenta o filósofo Renato Noguera5.
Se nossa capacidade de imaginar se reduz, ou pior, passa a ser condenável, é porque a vida prática cotidiana tem ocupado espaço demais. Ou pior, tem pesado mais do que deveria. Argumento, portanto, que imaginar é um direito social e sonhar é imprescindível para sairmos da sobrevivência e experimentarmos a vida em sua plenitude. Sem deixar de mirar o chão da realidade em que pisamos, não dá para esperar pelo bom tempo, se é que ele um dia virá. Nossa “saída de emergência” é pelo sonho e imaginação. Senão agora, quando?
1. Esta e outras conversas fazem parte da pesquisa que deu origem a tese “Fortaleza de afetos: imagens e narrativas de uma cidade entre muros” disponível em http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/66113
2. Em referência ao “apanhador de desperdícios” do poeta Manoel de Barros.
3. Há um documentário de 2001, dirigido por João Jardim e Walter Carvalho, com este nome e que aborda a visão como um dos sentidos para ler e conhecer o mundo.
4. Autor dos livros “Sonho manifesto” e “Oráculo da noite” em que discute a importância do sonho para a vida coletiva.
*Lara Denise Silva, doutora em Sociologia (UFC), professora da rede estadual do Ceará, pesquisadora do laboratório das artes e das juventudes – Lajus (UFC). Faz parte do coletivo Transfabuladores (@transfabuladores) e é escritora amadora em mastudoemuitomais.medium.com
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Camila Garcia