Sentei na cadeira derivada de petróleo, mas de um branco encardido e descascado, que ficava num ângulo de 45 graus em relação à TV de tubo de 29 polegadas que ocupava o espaço central da estante de madeira de lei na cor mogno. TV essa que era o centro das atenções de toda a família nos horários livres de trabalho, escola e afazeres domésticos. Só meu pai, quando ainda vivia com a gente, quando não estava viajando a trabalho, que não sentava com a gente na sala, ele ficava trancado no quarto, assistindo em sua TV e deitado.
Lembro como se estivesse agora mesmo nessa cadeira assistindo. Lembro das linhas que adornavam a cadeira indo de um braço a outro passando pelas costas, do detalhe rendado como pano de tapeçaria que ornava o encosto. Consigo ver as marcas do tempo na estante, dos pedaços lascados da madeira. Sinto o cheiro de ferrugem que vem ao olhar pro chão enegrecido pelo roçar de cadeiras de balanço que nem existiam mais, cadeiras que já haviam há muito sido substituídas por preguiçosas e que hoje davam lugar às de plástico, que tem assumido o rumo do planeta.
Por falar nas preguiçosas lembrei do dia que preguei uma peça numa de minhas irmãs. Mas não vem ao caso agora.
Um dia desses na frente da TV lembro-me de como me assustei e me irritei ao ver no Jornal Nacional uma matéria sobre uma invasão, como é tratado pela mídia comercial, de uma fazenda da Cutrale, empresa do agronegócio brasileiro do ramo da alimentação. A cena era de vários Sem Terra entrando na fazenda e arrombando a porta da casa sede, depois corta para uma cena de filme de uma jovem com um trator da fazenda derrubando todos os pés de laranja. A principal matéria do dia do Jornal foi essa.
Lá em casa eu, minha mãe e minha tia, que morava com a gente, começamos a interagir com a notícia. Mainha que é professora de história e um tanto conservadora começou fazendo uma enxurrada de críticas negativas a ação do MST, tia Lêda engrossou o caldo.
- Absurdo!
- Invadir uma fazenda que faz suco e destruir tudo.
- É muito errado isso que os Sem Terra fazem.
- Bando de vagabundos, uns safados!
Essas e outras avaliações se juntavam às leituras do Willian Bonner e da Fátima Bernardes que na época eram os principais influenciadores da opinião pública do país. Ao falar isso, me arrepiam os pelos do braço e me esquentam as orelhas, recordo da pesada energia que tomou a sala da TV, nosso espaço de diversão em família e de descanso da mente e do corpo do dia a dia.
Uma sensação quase palpável de ódio se apossou daquele espaço que geralmente era preenchido de risos e brincadeiras. Onde eu tenho muitas das memórias felizes com tia Lêda, que já não está mais entre nós, virou adubo no cemitério do Socorro junto com ti Deca, vozinha, tia Dengosa e outros dos nossos.
Acho que essa foi a primeira vez que vivi de forma tão nítida um sentimento, que ele criou contorno, cheiro, sabor e expressão. E nesse momento introjetou em mim um ódio inexplicável contra o MST; sensação que me acompanhou até a entrada na faculdade de Agronomia e perdurou por um tempo ainda.
Eram os anos 1990 do século passado, década do massacre de Eldorado dos Carajás na curva do S nas terras paraenses e tantos outros atentados e assassinatos desses miseráveis que tudo que queriam e querem é realizar seu sonho de ter seu pedacinho de terra, de viver com dignidade. Mas não tenho lembranças dessas situações aparecendo na TV. Não lembro de ter visto o povo se solidarizando com esses mortos e com seus parentes. Esse sentimento não lembro de ter visto a TV estimulando.
É estranho olhar pra nossa caminhada e perceber os deslizes, inconsistências, as rachaduras. Mas perceber esses processos nos ajudam a entender o que nos orientou os passos e o que foi que tensionou a gente contra.
Lembro também como hoje o dia em que meu caminho em relação ao MST e à esquerda sofreu sua inflexão a ponto de ser sem retorno. Era um dia quente de férias, eu, meu pai, minha mãe, minhas duas irmãs e meu sobrinho prematuro recém-nascido estávamos em alguma BR pernambucana, vindo de Recife em direção a Juazeiro do Norte. Vínhamos das terras que adotaram Clarice para as que fizeram Patativa porque minha irmã se fez mãe antes do tempo por causa de uma queda nas calçadas em ruínas de Recife. Retornava porque precisava de uma rede de apoio diária com meu sobrinho e que por lá no momento não teria. Minha mãe e meu pai precisavam retornar aos seus postos de trabalho para seguirem alimentando a máquina de moer gente do capital com seu sangue e suor.
Em algum entroncamento desta BR nos deparamos com uma coluna de fumaça preta que tocava o céu, ao chegarmos mais perto vemos carros retornando, recalculando a rota, e ao chegar rente à barreira vemos várias bandeiras, camisas e bonés vermelhos, são agricultores estampados na logo que orna essa vermelhidão que contrasta com a fumaça, os mesmos que vestem o vermelho e paralisam o tempo. Que fecham a BR para abrir caminhos de diálogos.
Meus pelos se arrepiam, sinto uma gota gelada escorrer sobre minha coluna, me sinto paralisado e assustado. Eu não entendia o porquê daquilo tudo. A cena ficou impressa em minha massa cinzenta, na minha carne.
Bom dia. Gritou meu pai, enquanto baixava o vidro do carro, para um desses homens de vermelho, que ouviu e se aproximou. Outra gota gelada escorreu pelas minhas costas, fiquei ainda mais sem reação. O homem se encostou no carro para ouvir o que meu pai queria com ele, ouviu atentamente meu pai explicar que a gente tava vindo de Recife em direção a Juazeiro, que estava levando minha irmã ainda vivendo o pós-operatório da cesárea e meu sobrinho que tinha algo em torno de 4 meses, o braço da grossura de meu polegar e a cabeça raspada para receber a sonda na UTI neonatal porque nos braços ele arrancava, que os dois estavam com a saúde frágil.
Meu pai falava tudo isso na intenção de que deixassem a gente passar ou quem sabe orientassem um caminho alternativo não muito longo, dada a fragilidade da saúde de minha irmã e sobretudo do meu sobrinho. O homem, depois de escutar tudo, não lembro que disse, mas que se sumiu por um pedaço. Vi ele falando com algumas pessoas ao longe.
Com um pedaço ele retorna e manda meu pai retornar alguns metros e pegar uma via carroçal paralela a BR e seguiu de volta em direção a fumaça, cada vez mais densa. Pois bem, meu pai sem questionar seguiu as orientações e quando chegamos rente a coluna preta que tomava o céu, o homem fez sinal para outros 3 que afastaram as motos que bloqueavam essa estrada alternativa e nos liberou a passagem.
Depois dessa situação fiquei me questionando se o MST era de fato tudo aquilo que diziam a TV e as pessoas próximas a mim. Mesmo na faculdade. Fiquei remoendo aquele dia buscando compreender o que levou aquele povo a fechar a BR, ficar sob o sol, a fumaça e as ameaças. O que faz uma pessoa morar anos debaixo de uma lona preta sob-risco de agressão da polícia e de jagunços. Mas o que mais me intrigava era saber porque nos deixaram passar.
A única conclusão que cheguei é que o que move aquelas pessoas é a crença de que um mundo melhor é possível e o amor ao povo, pois mesmo quando já são assentados eles ajudam em novas ocupações, pois enquanto houver um só Sem Terra no mundo, a luta não acaba, como me disse uma vez uma grande dirigente do Movimento.
Desde essa contradição posta ali na minha frente que o germe do comunismo, da luta revolucionária e sobretudo do amor à minha classe e ao meu povo me pegou e não largou mais. Que possamos viver a contradição que move caminhos.
*Trabalhador da cultura e militante social.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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Edição: Camila Garcia