Ceará

Morte do livro

Opinião | Não rimarei a palavra Brasil com a incorrespondente palavra imbecil*

"O livro, nesses últimos tempos aqui no Brasil tem sido tratado como a Geni da música do Chico Buarque"

Fortaleza, CE |
Daniel Silveira [esq.] quando quebrou a placa em homenagem à Marielle Santos, vereadora do PSOL assassinada em 2018. - Reprodução/Twitter

Depois de um pequeno hiato na minha palavração semanal aqui no Brasil de Fato Ceará, retorno às minhas divagações e impressões sobre o dia a dia em nosso país, com uma tristeza sem tamanho. Morreu o livro. Essa criatura tão indefesa, mas tão perigosa por carregar ideias. Ele que tem pra todo gosto – conservador, progressista, revolucionário, defensores da ditadura, humanista, anarquista e tudo mais que se imaginar. Ele, que por se permitir ser ferramenta na mão de quem quiser é uma das tecnologias mais democráticas desse mundo.

O livro, nesses últimos tempos aqui no Brasil tem sido tratado como a Geni da música do Chico Buarque, as personagens de Meio Dia e tantas outras canções de Mastruz com Leite; como os personagens vilipendiados de livros como Vidas Secas, Grande Sertão Veredas, Torto Arado, Um Defeito de Cor, Insubmissas Lágrimas de Mulher e Devassos no Paraíso; como o povo de Bacural que foi caçado como animal selvagem por gringos do suposto mundo livre.

O livro, sofreu um primeiro golpe, quando o ministro da economia desse atual governo disse que os livros deveriam ser taxados e não as grandes fortunas, pois segundo ele quem lê é quem é rico, mas ele mesmo fez live com um adesivo de livro colado na parede e não uma estante cheia deles, como tantas outras pessoas fizeram na pandemia.

Um segundo golpe foi quando o material didático pedagógico criado pra combater a violência contra jovens e crianças LGBT+ nas escolas, ensinando-as e aos profissionais da educação a identificar e combater essas violências, respeitando colegas e a população em geral que faz parte da comunidade, foi atacado como uma ferramenta do marxismo cultural para doutrinação nas escolas e implantar uma ditadura gay no Brasil. Essa veio a ser uma das maiores mentiras contadas em nosso país e absorvida por grande parte da população, que tem dificuldade em aceitar o livre direito que cada um tem de amar.

Um terceiro golpe, tão grande quanto esses dois anteriores, foi a indicação do deputado federal do Rio de Janeiro que no início de julho foi homenageado com uma das maiores honrarias da Biblioteca Nacional – a Medalha da Ordem do Mérito ao Livro, Medalha que historicamente foi dada a grandes escritoras/es e intelectuais brasileiros que contribuíram de maneira significativa com o livro, a leitura e a cultura em torno do livro no país, agora é entregue a esse deputado, que é ex-policial e vinculado ao bolsonarismo mais podre que tem se apossado da pátria, que ficou “famoso” por em ato público quebrar uma placa de homenagem a vereadora Marielle Franco que junto com seu motorista foi assassinada pelas milícias do Rio, que ela tanto combateu.

O tal deputado, a única contribuição que deu foi ter, segundo ele ter lido mais de 800 livros, mas quem sabe o que é verdade, nesses dias de tantas mentiras. Mas, mesmo que acreditemos na palavra do tal deputado, que importa se ele é um desses que ajudou a alimentar a mentira do kit gay, se ele nem votou a favor nem propôs leis de incentivo específico ao livro, à leitura ou cultura livresca, se ele não questionou o ministro que propôs taxar os livros?

Ao ser perguntado pela imprensa sobre o motivo de ele ser um dos 200 homenageados com a Medalha, foi sincero, disse que não sabia. Mas tendo a acreditar que foi pela proximidade ideológica dele com o secretário “especial” de cultura que tem em sua agenda oficial participação em eventos culturais como clubes de tiro, isso mesmo, clubes de tiro de arma de fogo. Que essa sim sofreu muito apoio do governo e do tal deputado homenageado pra ter seu acesso facilitado.

Essa turma escrota fala que nós comunistas queremos fazer doutrinação ideológica, mas são eles que pela força tem imposto tudo o que eles acreditam sem escutar quem pensa diferente. Eles quem ameaçam o STF, quem são contra o acesso ao livro, à cultura e à educação, quem acham que saúde deve ser privatizada, que o financiamento público de bens culturais de acesso gratuito via leis de incentivo como a Lei Rouanet deve acabar, mas shows sertanejos de artistas famosos de valores absurdos pagos por pequenas prefeituras devem ser festejados e fomentados.

O prêmio criado em 1984 já agraciou pessoas como Carlos Drummond de Andrade – poeta, Gilberto Freyre – sociólogo, Jannice de Mello Monte-Mór – primeira bibliotecária a assumir a direção da Biblioteca Nacional, Oscar Niemeyer – arquiteto, Maria Alice Barroso – ex-diretora do Instituto Nacional do Livro e da Biblioteca Nacional, Roberto Burle Marx – artista plástico e paisagista e Luiz Schwarcz – editor da Cia das Letras.

Segundo informações coletadas na imprensa nacional, já temos indicação de outras pessoas também indicadas à Medalha de Ordem do Mérito ao Livro esse ano que já declinaram ao prêmio depois de saber que o tal deputado receberia. Esse a Biblioteca pretende ofertar a honraria a 200 pessoas em alusão ao Bicentenário da Independência do Brasil. É importante dizer por fim que a Associação dos Servidores da Biblioteca Nacional (ASBN) lançaram nota pública se posicionando contra a indicação do deputado em questão.

*Parafraseando os dois primeiros versos de ‘Consideração do poema’ de Carlos Drummond de Andrade em seu célebre livro A rosa do povo.

*Trabalhador da cultura e militante social.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Camila Garcia