O assassinato do indigenista Bruno Araújo e do jornalista Dom Phillips mostra a face do descaso com a defesa da proteção do meio ambiente e com a luta dos povos indígenas. Mas o que representa de fato esse caso? Como está a situação da garantia das pautas da luta indígena no estado do Ceará? Para falar sobre o tema, o Brasil de Fato entrevistou Weibe Tapeba, professor, advogado do escritório de advocacia popular indígena Ybi, liderança indígena do povo Tapeba e vereador no município de Caucaia. Confira
Como o caso do assassinato do Bruno Araújo e do Dom Philips repercutiu entre a população indígena do Ceará?
Essa notícia chocou, na realidade, todos os povos indígenas do Brasil. E assim, eu tive a oportunidade de ainda nesse ano de 2022, no começo do ano, ter estado em Tabatinga, que é na região onde eles foram executados. Eu tive a oportunidade de conversar com muitas lideranças indígenas da região. É uma região muito violenta, que apresenta um cenário de ameaça muito forte.
Os relatos são preocupantes e também geram temor. São relatos assustadores de, por exemplo, algumas embarcações de indígenas, vez por outra alguns parentes conseguem visualizar as embarcações descendo o rio, sem direção, flutuando normalmente, e quando vão olhar tem parente indígena morto dentro da embarcação, ou simplesmente dão um sumiço nas pessoas. Então é uma região violenta, é uma região tensa.
Essa notícia chegou para os povos indígenas do Brasil, especialmente do Ceará, com muita preocupação. É um cenário em que o próprio governo brasileiro tem estimulado a mineração em terras indígenas, aliás, estão tentando dar celeridade na tramitação do PL 191, do Congresso Nacional, que tenta regulamentar essa atividade ilegal nos territórios, aonde, deveria ser combatida pelo atual governo.
Então é uma notícia que trouxe uma preocupação muito grande, uma revolta aos povos indígenas, porque nós entendemos que tanto os jornalistas investigativos, que entram nos territórios indígenas para denunciar esse tipo de violação, mas, principalmente, os indigenistas de carreira precisam ter proteção e essa proteção precisa acontecer, inclusive, sendo uma proteção com aparato do Estado e não o Estado virar as costas para essas pessoas que, de algum modo, tentam dar visibilidade a casos de violação de direitos humanos dos povos indígenas, que muitas vezes não tem tanta divulgação assim.
De acordo com seu relato, pode-se afirmar que esse caso do Dom e do Bruno não foi um caso isolado?
Certamente. Nós temos um cenário de um número crescente de assassinatos no campo, dentro dos territórios indígenas, em assentamento, comunidades quilombolas. Tem muitos indígenas morrendo exatamente por fazer a proteção dos territórios. Nessa região, é importante colocar, que é uma região de fronteira, nessa região que eu estive lá em Tabatinga é uma região da tríplice fronteira, ali é Brasil, Peru e Colômbia com muita facilidade acontece essa atuação de organizações criminosas, dos madeireira, dos garimpeiros, dos pescadores ilegais, dos caçadores ilegais, então ali é uma afronta a soberania nacional, a soberania brasileira.
E o que representam esses assassinatos?
Esses assassinatos representam uma intimidação a essa luta que tem evoluído, uma luta pela terra e pelo território. A luta pela demarcação dos territórios indígenas é uma luta pela sobrevivência, não somente dos povos originários, mas também está em jogo o futuro das próximas gerações.
Em um mundo em que se discute mudanças climáticas, há necessidade de nós termos uma nova cultura ambiental, um novo olhar sobre o nosso planeta. Os povos indígenas, como os povos originários são os povos que mais protegem o meio ambiente, que mais protege a natureza, que mais assegurar a conservação e a preservação dos recursos naturais. Então essa militância, essa defesa desse território precisam, inclusive, ser apoiada, precisam ser fomentadas pela própria estrutura de Estado, pela iniciativa privada, pela comunidade internacional, e essas ameaças que têm acontecido elas precisam realmente cessar, e para isso seria muito necessária a atuação das instituições públicas.
Como você avalia a atuação do Governo Federal em relação às pautas indígenas?
Primeiro é importante dizer que Bolsonaro, ainda quando era candidato a presidente da república, publicamente colocou que se fosse presidente não demarcaria um centímetro de terra indígena no Brasil, e depois falou que não era um centímetro, não, era um milímetro de terra indígena, e ele está cumprindo essa promessa. Ele falava que se fosse eleito ele daria uma foiçada no pescoço da Funai e ele está cumprindo com essa agenda anti-indígena.
Além de não demarcar nenhuma terra indígena é importante a gente colocar alguns dados: nós temos hoje no Brasil 119 terras indígenas em processo de demarcação, mas esse “em processo” é um dado que está praticamente parado, porque a Funai não deu conta da continuidade na primeira fase da demarcação dos territórios indígenas que é a fase de identificação e delimitação. Então são 119 terras indígenas que se encontram com processo de demarcação paralisados, além disso, nós temos mais de 500 terras indígenas reivindicadas para que essas áreas sejam objetos dessa ação inicial de identificação e delimitação.
Se a gente juntar esses números de mais de 500 terras indígenas sem nenhum tipo de providência junto com essas 119 terras indígenas que estão com processo de demarcação paralisados nós vamos ter mais de 50% das terras indígenas no Brasil sem nenhum tipo de segurança jurídica, sem nenhum ato do governo brasileiro que reconheça aquela área como sendo uma área de ocupação desses povos originários, então nós estamos em um cenário de extrema vulnerabilidade.
E tem alguma expectativa desse cenário mudar?
Nós não acreditamos. No atual governo nós não acreditamos. A 18ª edição do Acampamento Terra Livre foi realizada em Brasília no mês de abril. Foi uma edição que decretou esse ano de 2022 como sendo o último ano do governo Bolsonaro. Nós acreditamos em uma possibilidade de mudança com a derrota desse atual governo e a construção de um governo progressista, que coloque na sua agenda institucional, no seu plano de governo uma prioridade de fortalecimento da política indigenista brasileira através do fortalecimento da Funai, através da previsão de orçamento para demarcação e proteção dos territórios, através de uma nova roupagem de diálogo com a sociedade civil.
E como está a situação da FUNAI no estado do Ceará?
A Funai é uma instituição que foi aparelhada por grupos ligados às forças armadas no Brasil, como o Bolsonaro tem feito. Ele tem militarizado a maioria das instituições e a Funai não foge à regra. A Funai, desde a sua presidência, as diretorias e as coordenações gerais lá em Brasília até as coordenações regionais são postos, são cargos que estão sendo ocupados por militares. A maioria deles, inclusive, militares da reserva, o que nos preocupa.
A Funai, aqui no estado do Ceará, desde que esse governo assumiu, ela perdeu praticamente a sua função institucional. Não tem recursos para realização de atividade de proteção territorial, de assistência às comunidades indígenas. É uma instituição que está, vamos dizer assim, sobrevivendo através somente da manutenção do funcionamento da sede e das coordenações técnicas locais. As atividades de planejamento junto com os povos indígenas, atividades de assistência e de proteção territorial foram atividades que praticamente inexistiu nesse atual governo.
A população indígena do estado do Ceará se sente representada ou assegurada de alguma forma pela atual gestão da Funai?
A atual gestão se afastou demais do interesse comum dos povos indígenas, que é a demarcação dos territórios, que é a proteção desses territórios, que é de você fomentar as ações para o etnodesenvolvimento, para a economia solidária das comunidades, projeto de bem viver dos povos, para você fomentar atividades produtivas, a agricultura familiar. Então é uma Funai que está aparelhada pelo governo Bolsonaro para atuar contra os interesses dos povos indígenas.
Na sua fala você trouxe que ela não tem mais esse diálogo com os povos indígenas. Você acha que a questão da luta do povo indígena, de certa forma, paralisou ou retrocedeu por causa da Funai?
Primeiro é importante colocar que a Funai, embora seja uma instituição oficial e é o órgão indigenista brasileiro, não realiza a tutela dos povos indígenas. Os povos indígenas, com o advento da Constituição Federal assegurou-se o direito à organização social própria e ninguém tem mais tutela sobre povos indígenas, e os povos indígenas se alto representam.
A Funai, na verdade, perdeu foi a sua conduta, a sua missão, se afastou demais da defesa dos direitos dos povos indígenas e nós não depositamos nessa instituição, vamos dizer assim, a confiança de ser uma instituição aliada e parceira defensora desses direitos indígenas, mas evidentemente que não é pelo fato da Funai ter sido descaracterizada nesse atual governo que os povos e as suas organizações representativas tenham deixado de lutar, pelo contrário, a nossa luta tem aumentado cada vez mais e é uma luta com diversas facetas. É uma luta que ganhou o campo internacional.
E quais são as principais pautas levantadas atualmente?
A principal pauta gira entorno do território ainda. Há uma necessidade da retomada da demarcação dos territórios indígenas. Há uma pauta na defesa dos direitos que foram conquistados até aqui, porque, infelizmente, no atual governo se escancarou uma estratégia de tentar recuar e de retirar direitos. Então nós estamos tentando manter o que nós já temos.
Lá no Congresso Nacional tem uma agenda que nós chamamos “Pacote da Destruição”, que é uma série de proposições legislativas que atacam os direitos dos povos indígenas. É o PL 490, que tenta mudar as regras da demarcação de terras indígenas e tenta regulamentar o Marco Temporal; é o PL 191 que tenta regulamentar a mineração em terras indígenas; é o PL do agronegócio; PL do licenciamento ambiental que fragiliza as regras de licenciamento ambiental; é o PL da grilagem, que tenta titular terras indígenas, terras da União como sendo áreas privadas. Então nós temos feito um acompanhamento nesse conjunto de proposições legislativas para manter o que nós já temos assegurado enquanto direito.
Nós temos lutado é por isso, é para assegurar, inclusive, que as nossas comunidades tenham direito de permanecer nos nossos territórios, porque do jeito que andam as coisas nós temos muito medo de que haja um cenário em que nós, povos indígenas, sejamos expulsos dos nossos territórios tradicionais, como tem acontecido em muitas regiões.
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Edição: Camila Garcia