Além da luta pela demarcação do seu território, o povo Anacé, da Terra Tradicional, no município de Caucaia, também luta por saúde, reconhecimento de direitos e pelo acesso à água de qualidade. Hoje, as aldeias Anacé não possuem acesso à água, mesmo tendo o rio Cauípe correndo em suas terras e, de acordo com as lideranças indígenas da região, o recurso hídrico do rio acaba indo para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém sem chegar às casas das famílias.
E para falar mais sobre essa luta o Brasil de Fato conversou Paulo Anacé, liderança indígena da aldeia Cauípe. Confira.
Paulo, gostaria de começar nossa entrevista perguntando justamente sobre a disputa pela água do rio Cauípe. Qual é a realidade das aldeias do povo Anacé, em Caucaia atualmente?
Na Caucaia, o povo Anacé tem vinte e seis aldeias, isso o povo Anacé da Terra Tradicional, porque com a luta pela água em 2016, o povo Anacé foi dividido pelo estado em dois povos, que é o mesmo povo Anacé. Uma parte ficou na Taba dos Anacé, que é a reserva indígena Anacé próximo a CE 085 e as outras três mil famílias que se dividem em vinte e seis Aldeias ficaram no resto do território que o próprio Estado não considera como indígena.
Então assim, essas vinte e seis aldeias têm muita coisa que ainda está muito carente, principalmente na questão do acesso à água. Nós, por exemplo, não temos água em nossas casas, a maior parte das aldeias não tem água, principalmente as que estão mais próximas do Lagamar do Cauípe, como as nossas, a grande aldeia Cauípe e aldeias mais próximas do rio não tem água nem tratada, nem potável nas suas casas.
O Cauípe, que é um dos maiores espelhos d'água do Ceará, segundo a própria COGERH [Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos] fala, o Lagamar do Cauípe é um dos maiores recursos hídricos, é um dos maiores espelhos d'água do estado. Ele nunca secou, é um rio que tem essa constância, independente da época de muita ou pouca chuva, nós temos água, mas o que acontece? As comunidades que estão ao seu redor, as nossas aldeias que estão ao redor, mesmo tendo o rio, não temos águas nas nossas casas.
Há muitos anos, desde o começo dos anos 2000 que a gente briga, principalmente para essa água chegar nas nossas residências e a gente vem travando esse duelo com o estado, principalmente quando o estado resolve colocar o Complexo Industrial dentro do nosso território, expulsando várias pessoas, colocando, no caso, algumas na reserva e outras que ficaram de fora sem esse acesso a água.
Nós não temos água, nós também não temos reconhecimento do próprio estado. Nós estamos ainda em estudo para a demarcação do nosso território desde 2009, no momento ele está parado. Houve um estudo anterior onde as pessoas eram apontadas como sendo, ou não indígenas, por quem não era indígena. Então é essa nossa realidade e continua, desde o começo dos anos 2000. Só vem piorando por conta dessa amplitude do Complexo Industrial que está vindo cada vez mais forte para cima das aldeias.
E qual o sentimento em ver a água indo para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém e não para as famílias?
Eu sempre falo que o povo indígena tem um sentimento diferente sobre a terra e sobre a água. Nessa mesma semana me perguntaram, eu acho que foi pessoal dos Direitos Humanos, veio me perguntar qual era a importância para mim da água. O valor da água para a nós é muito mais do que simplesmente algo líquido, um objeto líquido, um recurso líquido que está ali e você ver. Para nós é um local sagrado, o rio é um local sagrado, a água é um local sagrado porque a terra, para nós, é a nossa mãe e o rio, a água seria como se fosse o sangue da terra.
O rio Cauípe, as águas são isso para nós, e secar isso é como se você estivesse tirando o sangue da sua mãe, você está matando ela aos poucos.
A gente vem lutando muito sobre isso, a gente já teve vários impactos e esse sentimento é de revolta, o povo tem a revolta que, enquanto a gente protege a água, enquanto a gente protege os rios e os mananciais, o estado retira, achando que essa água nunca vai acabar, porque uma hora ela pode secar, como o sangue da terra, como o sangue da mãe, um dia ele vai secar e como vai ficar todo mundo ao redor?
Existem dados sobre o volume de água que é retirado do Rio Cauípe para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém?
Sim. Só do complexo industrial da região do Lagamar é retirado entre 800 e 900 litros de água por segundo. Antes eu achava que ia só para o complexo, mas não vai só para o complexo, vai para uma estação que se une as águas que vem também do Castanhão, que tem todas as adutoras que vão lá para a divisa ali em São Gonçalo e Caucaia. Essa água é dividida, uma parte vai para o complexo industrial e outra parte vai para abastecer São Gonçalo do Amarante que é outro município. Também para abastecer um local que antes era tido como um dos grandes reservatórios do estado, que era Sítios Novos que ficou seco. Secaram Sítios Novos também por conta do complexo industrial e o povo de Sítios Novos não tinha água.
Se fosse para São Gonçalo e Sítios Novos até que nós não teríamos tanta revolta, isso ainda diminui essa dor, mas quando se fala que se pega água limpa e joga para esfriar caldeiras, esfriar placas de aço, isso dói muito. Fora toda a conjuntura, a poluição que é causada depois dessa água utilizada, porque a água não vai voltar como ela estava, naquele mesmo estado. Então a gente vê que tudo isso é um desrespeito, um desagravo, principalmente às pessoas que não tem água, não tem água nem para beber, nem para alimentar os seus animais que sofrem com isso.
Sobre essa situação que você acabou de relatar para gente, um pouco sobre a realidade do que vocês vivenciam, hoje vocês não têm acesso a água tratada, encanada e saneamento básico, é isso?
Isso. A gente acha até às vezes que é algo proposital, que você tá com várias aldeias dentro de um complexo industrial que a tendência é sempre crescer e não tem água nas suas casas, por exemplo, aqui na minha aldeia são mais de 300 famílias, na aldeia do lado são mais 150 famílias, se você for juntar, aqui no grande Cauípe deve ter em torno de 500 a 1.000 famílias, mais ou menos, são muitas aldeias. Se for pensar tem muita gente e eu estou colocando apenas aqui pela aldeia Planalto Cauípe são 300, mais 150 da Pitombeira já vai 450, então você já vê que tem muito mais de mil famílias aí que estão sem água nas suas casas. Não tem água tratada, ou quando tem é como eu falei, é uma vez por semana e não é tratada porque a COGERH não dá água tratada, quem dá água tratada seria a Cagece e a Cagece não entra dentro deste território, até porque não acha que existe recurso, um retorno de capital para eles, então eles não têm interesse.
A prefeitura já trouxe alguma proposta de solução para vocês em torno da água? Como é que está essa questão com a prefeitura, ou até mesmo com o governo do estado sobre o acesso a água de tratada?
A própria prefeitura não mostra interesse, o interesse dela é o seguinte: “olha, vocês têm os poços, o máximo que a gente pode fazer é liberar uma vez por semana ou duas vezes por semana a água à casa de vocês. A gente contrata uma pessoa para liberar essa água, essa pessoa vai lá libera e pronto”, então é o máximo que eles fazem. Aí vieram com o projeto do Sisar [Sitema Integrado de Saneamento Rural], que aí já é do estado e São José, mas esses dois projetos iriam para 2023 e já foram cancelados de novo agora não tem data prevista ainda para acontecer. Então são coisas assim que só vão sendo empurradas com a barriga, sabe? Nunca acontece.
Então esse diálogo sobre o acesso a água de qualidade existe? Vocês estão nesse processo de diálogo com o poder público?
A gente tenta conseguir, mas assim, sempre o poder público faz promessas, mas depois ele mesmo cancela e ele mesmo empurra. Era para 2023, mas já foi cancelado, agora não sabe para quando, talvez seja para 2024 que tem eleição de novo, ninguém sabe, vai sendo empurrado cada vez mais e enquanto isso as pessoas continuam sem esse recurso, e você ver que cada garrafão d’água que aqui você compra é R$5 reais, para aqueles que têm condição, beleza, mas para quem não tem R$ 1 real, não tem um recurso para estar mantendo isso, pessoas que tem que pagar carro pipa para comprar mil litros de água para passar uma semana, duas semanas utilizando aqui, então isso é a realidade do povo que mora aqui, é comprar água de todas as formas, mesmo tendo água a sua porta.
Essas questões que estramos conversando são sobre o acesso à água tratada, mas e a água do rio Cauípe em si, há diálogos sobre essa retirada da água para o Complexo Industrial, sobre deixar água no território indígena? Tem algum diálogo com o poder público entorno disso?
Não, até porque eles fazem de tudo para dizer que não é território indígena, e até para nos invisibilizar. Eles não querem aceitar isso, até o estudo de demarcação é barrado por conta do complexo em si, então a água do Cauípe sempre foi essa briga. A gente não pode utilizar o rio nem para lazer, você quer construir uma barraquinha indígena a 30 metros do rio e já é derrubada, enquanto você vê que tem grandes empreendimentos como o Vila Galé, outros especuladores imobiliários que estão na beira do rio e nada é feito, então assim, a nossa água a gente não pode utilizar. É muito difícil.
A gente ainda usa de recursos como, por exemplo, a pesca, o que a gente ainda consegue fazer é tirar o peixe, que tem muito peixe ainda no rio, alguns ainda tentam tirar um pouquinho da água para aguar as plantas, ou coisa do tipo para a agricultura, mas tudo é muito fiscalizado quando se fala em nós utilizarmos, se a gente utiliza derrubam a barraca, a gente recebe ameaça do poder público.
Nesse sentido, o povo não tem acesso e o Cauípe, inclusive, a gente tem vários projetos para utilizá-lo de modo sustentável, de forma que o continue preservando, até pelo sentido, como eu sempre falo, do nome dele significa “é onde caminha o Grande Espírito”. A gente tem esse respeito pelo rio, a gente o protege, a gente não coloca nada para dentro dele, a gente já teve momentos de barrar até uma estação de tratamento de esgoto à beira do rio que era do Vila Galé.
Como a população pode ajudar com a luta do Povo Anacé?
Eu sempre falo que o apoio é o principal, é dando visibilidade, é mostrar a nossa história, é estar vindo ao território conhecer. Eu acho que é conhecendo a história mesmo, dando visibilidade, apoiando. Eu acho que é muito importante estar apoiando, estar participando da oficina, participando de eventos, momentos onde o povo Anacé, não só o povo Anacé, como tem o povo Tapeba aqui também na Caucaia e tantos outros povos indígenas que existem que precisam desse reconhecimento, dessa visibilidade.
Eu acho que é isso que nos fortalece, porque dando essa visibilidade os inimigos têm mais receio de onde eles vão estar mexendo. Eu agradeço mesmo. Agradeço quando a imprensa nos ouve, quando as universidades nos ouvem, quando outras organizações vêm e conversam e dialogam com a gente e procuram saber um pouquinho dessa história. Isso é o que nos fortalece.
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Edição: Camila Garcia