Quando realizou a readequação do nome, ou seja, a mudança, no documento, para o gênero feminino e para designação adequada, a atendente do núcleo do idoso da Defensoria Pública do Ceará e atriz performer, Patrícia Dawson, percebeu um renascimento. “Não deixa de ser um processo difícil, o preconceito é imenso. Mas, agora, passo por menos constrangimentos e tenho minha dignidade assegurada”, diz.
No próximo dia 30 de junho, a Defensoria Pública do Ceará promove um mutirão para a retificação do nome em documentos. Mariana Lobo, titular da Defensora Pública Geral do Ceará, entende a readequação como uma afirmação do gênero, mas não só. Percebe a mudança como uma conquista de toda a sociedade. “É reafirmar que todos nós temos direitos, direito à empregabilidade que é algo tão almejado e é uma questão de luta pela nossa sociedade”, conta. O direito à retificação do gênero e do nome é sinônimo de direito à dignidade, principalmente.
A artista e ativista pelos direitos das pessoas trans, Yara Canta coordena a Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac). Mas, embora tenha conhecimento, anos de luta, o processo não deixa de ser um fardo pesado. A retificação do nome e do gênero, por meio de um processo judicial ainda em 2017, deu um mar de possibilidades a ela. No “Enquanto eu não tinha os meus documentos retificados, eu enfrentava muitas questões. De não ter o respeito ao uso do nome social sempre com essa justificativa de que ‘ah, não está no documento, não é válido’. Muito embora as leis já garantisse isso”, informa.
Yara integra o Fórum Nacional de Travesti e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans) e auxilia na orientação a homens e mulheres trans quanto a ter os seus direitos respeitados. “É importante salientar que quem ainda não retificou os documentos tem, sim, o direito garantido por lei de ter o seu nome social respeitado. Mas eu mesma enfrentava muitas dificuldades em atendimentos médicos, em todos os espaços que eu fosse. A razão é o preconceito e o desrespeito”, conta.
Após ter conseguido alterar os documentos, a situação melhorou. Apesar de que a retificação do nome e do gênero não é garantia plena de direitos e respeito. “Mas é um passo importante que, para muitas meninas, se torna essencial”. O direito a ser quem você é, por meio da documentação, é um direito assegurado pela legislação a partir de março de 2018. Na data, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a troca de nome e gênero em documentos de transgêneros a partir da autodeclaração. Pelo entendimento da Corte Suprema, a partir disso, não seria mais necessário apresentar tratamento hormonal, laudos médicos ou comprovação de cirurgias para pedir a readequação do nome e gênero. A orientação era realizar todo o procedimento nos cartórios, de forma administrativa, e não mais via judicial.
Meses depois, mais uma vitória: em julho do mesmo ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) delimitou, por meio de uma publicação, regras para que os cartórios efetivassem a mudança de nome e gênero nas certidões de nascimento e casamento. Com isso, para a conquista da readequação do nome e do gênero não seria mais necessário recorrer ao Poder Judiciário.
Para a defensora pública geral Mariana Lobo, existe a necessidade do fortalecimento de políticas públicas em relação à garantia de direitos à população LGBTQIA+, sobretudo em relação ao atendimento à saúde. Isso porque nos postos não existem profissionais médicos especializados no tratamento de pessoas trans. “Os municípios e o Estado devem, de uma maneira geral, garantir o processo da saúde”, aponta.
Retificação é só o primeiro passo
Após conquistas históricas como as da readequação do nome e do gênero, temos acompanhado um crescimento muito grande da intolerância, um crescimento gigantesco do ponto de vista do desrespeito à livre orientação sexual e à identidade de gênero. “Sabemos que toda legislação nacional assegura a qualquer pessoa o direito de se socializar e de ser tratado de acordo com a sua identidade de gênero, mas o que a gente observa, na prática, é que existe uma um desconhecimento dos equipamentos públicos e privados”, comenta.
No Estado do Ceará, por exemplo, existe legislação específica que determina, nos estabelecimentos, que a orientação de gênero da pessoa seja respeitada e que ela seja tratada de acordo com a sua autodeclaração. “No entanto, chegam a nós denúncias de desrespeito à identidade de gênero e a maioria dos casos é nas escolas privadas. Nas escolas da rede pública estadual, temos observado um respeito maior à legislação”, assegura.
De acordo com Mariana Lobo, a Defensoria Pública tem se deparado com desrespeitos e violações a todo o momento às crianças e adolescentes, sobretudo adolescentes trans. “Não é o que a pessoa ou o que a escola acha. É a legislação, é o que o direito assegura. As pessoas podem ter suas opiniões particulares, mas, quando vivemos em sociedade, nós temos que ter respeito à legislação e à própria pessoa porque, se não, nós estamos cometendo um crime”, informa Lobo. A Defensoria tem recebido ainda muitas denúncias de casos de discriminação e LGBTfobia em equipamentos bancários e, ainda, relacionados à gestão do consumidor como, por exemplo, planos de saúde.
Em todos esses casos de intolerância e de desrespeito, a escola tem um papel importantíssimo porque ela é formadora de cidadania, de educação e de direito. “A ausência de respeito e de direitos tem como consequência os casos de violência e agressão física. Infelizmente o Brasil é um dos campeões em homicídios contra pessoas trans e o Ceará também está à frente do ranking nada satisfatório”, pontua a defensora geral.
Casa Transformar
Lara Nicole Medeiros Mota resolveu que não daria para deixar a população LGBTQIA+, sobretudo as mulheres e homens trans, sem nenhum apoio. Fundou a Casa Transformar, que é, antes de tudo, um espaço de acolhimento. “Aqui em Fortaleza, não temos apoio de nenhum órgão público, nem da Prefeitura nem do Governo do Estado. O projeto se mantém por meio de campanhas realizadas pela rede social Instagram, hoje, a principal ferramenta de captação de recursos.
Oficialmente, a Casa Transformar atua desde outubro de 2019. No entanto, o espaço acolhe desde o fim de 2017. Desde essa data, duas mulheres trans, Lara Nicole e Davila Lima decidiram receber e dar abrigo a uma travesti. “Não tínhamos nenhuma pretensão. Na verdade, eu pensava em algo do tipo de acolhimento para pessoas LGBTs, mas a gente nem imaginava que fosse acontecer naquele momento”. Bruna, a primeira a ser acolhida, abriu espaço e hoje o projeto auxilia e dá suporte a 15 pessoas LGBTQIA+ e acolhe, ou seja, moram no local, seis pessoas.
A casa atua, em uma parceria com Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB/Ceará no processo de retificação do nome e gênero. “Todas as pessoas trans da casa são beneficiadas também pelo projeto”, partilha.
A ativista Yara lembra que é necessário dar passos mais profundos para que o Ceará, o Brasil e o Mundo se tornem mais receptivos às pessoas trans, LGBTs. “Precisamos realmente ter ações em todas as linhas de atuações possíveis, como a saúde, a educação, a segurança pública. A partir daí, é preciso construir políticas públicas efetivas voltadas especificamente para a população LGBTQIA+, com um carinho especial ainda para pessoas trans travestis”, sugestiona.
Números
O Ceará vem crescendo, ao longo dos anos, na garantia do direito à readequação. Em 2019, foram 122 pessoas que passaram pelo processo de readequação do gênero e do nome. Já em 2021, subiu para 140 pessoas.
“É o retrato para qualquer ser humano, é o direito mais básico de qualquer pessoa de você ser quem você é. De você se socializar como você é, quem você é. “Toda vez que concluímos um processo, as pessoas dizem: ‘doutora, eu nasci hoje’”, relata Mariana Lobo.
Serviço
No dia 30 de junho, será realizado o processo de readequação dos nomes nas sedes da Defensoria Pública do Estado do Ceará em três cidades: Fortaleza, Juazeiro do Norte e Sobral. As pessoas que devem passar pela mudança já realizaram as inscrições. Entretanto, a defensoria pode receber demandas de readequação durante todo o ano. Para saber mais é possível entrar em contato com o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria pública pelo telefone: 85 3264.4469.
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Edição: Camila Garcia