Ceará

Março das Mulheres

O que elas dizem quando o assunto é a valorização da mulher no mercado de trabalho?

Mesmo diferentes, elas mostram que não precisam nomear o patriarcado para entender a pressão exercida por ele

Fortaleza, CE |
arte colagem
A vida, carreira, desafios e conquistas das mulheres quando o assunto é trabalho. - Arte: Doug Araújo/ Colagem e Rebeldia

Lia Raquel, Lizamara Furtado, Regilane Alves e Barbara Marques nunca se encontraram, mas possuem muito em comum: apesar de trajetórias bem diferentes, todas identificam as particularidades do ser mulher no mercado de trabalho. Seja como empreendedora, auxiliar administrativa, agricultora, ou professora que foi alçar novos voos no exterior, elas seguem enfrentando os obstáculos diários que o mercado impõe. Neste mês dedicado as lutas das mulheres, o Brasil de Fato mostra que elas não são bobas, não precisam nomear o patriarcado para entender a pressão exercida por ele. Confira aqui pouco de suas vidas, carreiras, desafios, lutas e conquistas quando o assunto é trabalho.

Mulher empreendedora com muito orgulho


Lia Raquel: "Meu futuro é ter uma confeitaria, se Deus quiser isso vai acontecer” / Arte: Doug Araújo/ Colagem e Rebeldia

Lia Raquel é uma mulher empreendedora que passou a fazer doces e bolos na pandemia. O negócio começou pequeno, vendendo para as amigas e deu tão certo que aos poucos se tornou sua principal atividade econômica. Hoje ela vende suas delícias através do perfil @liaescudeiroconfeitaria no Instagram. Também advogada, mora com o marido e os três filhos no Bairro de Fátima, em Fortaleza. Conta que sua rotina é puxada, que ser mulher traz muitos desafios na direção dos negócios, mas que isso não a amedronta, faz é fortalecer seus planos de ter a própria confeitaria.

“Meu dia é bem cheio, acordo cedo porque meu filho menor vai para a escola, tenho que arrumar ele e dar o café da manhã. Depois começo com as coisas da confeitaria, com as minhas produções, tem sempre alguma coisa para comprar, um supermercado para fazer, marco e levo os filhos em médico e dentista. Tem ainda clientela para atender e passar orçamento. Decidi fazer gastronomia á noite e quando chego ainda vou estudar para depois me deitar, no outro dia começa tudo outra vez”, conta.

Formada em direito, Lia advogava e também estudava para concurso público, entretanto, a confeitaria começou a tomar cada vez mais seu tempo e ela decidiu focar no negócio. “A mulher tem as tarefas domésticas e ainda precisa se concentrar no trabalho. É preciso promover as suas ações, a sua mídia, verificar todo o formato do seu empreendimento. Estar sempre se aperfeiçoando, estudando. E como eu trabalho dentro de casa é bem difícil, porque às vezes as pessoas não entendem que eu estou trabalhando. Eu estou na cozinha da minha casa, mas eu não estou disponível”.

A confeiteira admite que para as mulheres sempre existe um olhar de desconfiança, enquanto para os homens, geralmente são direcionados elogios sobre a coragem de criar o próprio negócio. “Ser mulher empreendedora significa lutar todos os dias para mostrar que é capaz, que dá conta. Porque a mulher tem quem precise dela, alguém que ela cuida, ajuda, orienta, ou organiza. Ela assume atribuições que o homem não tem, ele só acorda e sai livremente para o seu trabalho. Em relação ao mercado, a mulher é vista como uma pessoa que está querendo algo, mas com aquela desconfiança se ela sabe realmente fazer aquilo. Já o homem empreendedor é visto como corajoso, já se acha que ele é um sucesso, que vai vencer e conseguir. Nós temos sempre que mostrar que conseguimos ser melhor ou igual, ou enfim, uma pessoa de sucesso”, declara.

Mas os obstáculos não diminuem sua vontade de vencer. Olhando para o futuro ela segue estudando gestão e aprimorando seus doces. “No futuro, me imagino sustentando a mim e aos meus filhos de maneira digna. Quero ter a minha própria confeitaria, um local físico onde as pessoas possam ir, onde possam comer uma coisa gostosa e voltar para casa bem felizes. Meu futuro é ter uma confeitaria, se Deus quiser isso vai acontecer”.

“Quero ser professora concursada da Caucaia”


Liza Mara: "Me imagino trabalhando na coordenação, ou até na direção de alguma escola" / Arte: Doug Araújo/ Colagem e Rebeldia

Liza Mara Furtado Silva tem 33 anos, é uma jovem mãe de três filhos: Maria Eduarda, Paulo César e Pedro Nicolas. Mora na Caucaia, estuda pedagogia na Universidade Federal do Ceará (UFC) e trabalha no Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Federal no Estado do Ceará (SINTSEF/CE), no Centro de Fortaleza.

“Meu dia a dia é bem corrido, eu acordo cedo porque meus filhos precisam sair cedo. Moramos na Caucaia, mas eles estudam em Fortaleza, em uma escola pública de tempo integral. Então, às 06h30min eles têm que estar na parada para pegar o ônibus, descer na estação da Caucaia e pegar o trem até o Conjunto Ceará. Aí eu venho para o trabalho, entro de 8h e fico até às 17h. Depois vou para a faculdade. Só depois volto para casa. Quando chego os meninos já estão dormindo. Por enquanto, a UFC ainda não voltou de forma presencial, aí saio do trabalho e vou direto para casa, assim fico com eles, é nosso tempo de conversa e de fazer as tarefas.”, narra Liza Mara.

A jovem afirma que adora ser mãe, mas que a sociedade coloca toda a responsabilidade dos cuidados com as crianças sobre as mulheres. “Ano passado meu filho caçula estudava em uma escola particular, quem levava era sempre o pai. Passou mais de um mês indo com meinhas coloridas. Ninguém nunca disse ao pai que o menino deveria ir com meia de outra cor. Uma vez que fui ao colégio, a primeira coisa que a diretora disse olhando para mim, mas falando com meu filho, foi: ‘peça que sua mãe compre meias brancas para você, porque aqui no colégio tem que ser meia branca, não pode ser meia colorida’. Eu senti ali, de forma descarada, como a sociedade, inclusive as mulheres, coloca em cima da mãe todas as responsabilidades. Nada é o pai, tudo é a mãe”, declarou.

Além da sociedade, Liza observa que as próprias mulheres se cobram e se culpam muito para dar conta de tudo. “Quando a gente tá trabalhando, se alguma coisa acontece e a gente é chamada do colégio, vem com o coração na mão, se sentindo culpada porque não estava presente. Assim também ficamos culpadas quando precisamos nos ausentar do trabalho para cuidar de filho doente, ou para levá-lo ao médico,” exemplifica. Ela afirma que só consegue administrar tudo porque tem uma boa rede de apoio.

Liza Mara sabe que tem uma rotina puxada, que não pode estar com os filhos tanto como gostaria, mas acredita que faz parte do seu investimento para o futuro. “Vivo por e para os meus filhos. Eu faço as coisas já pensando no futuro deles. Então, mesmo que eu me ausente um pouco agora, eu penso no que vou poder proporcionar para eles. Faço faculdade de pedagogia porque quero ser professora concursada da Caucaia. Me imagino trabalhando na coordenação, ou até na direção de alguma escola. Meu maior sonho é ver meus filhos formados, seguindo a vida com as próprias pernas , que sejam seres humanos bons. Meu maior sonho é ter saúde e vida para ver o futuro deles”, projeta.

A voz da jovem mulher agricultora


Regilane: " Falo com orgulho em todos os lugares que eu vou que sou agricultora, filha de agricultores assentados da Reforma Agrária" / Arte: Doug Araújo/ Colagem e Rebeldia

Ser mulher, jovem, agricultora e filha de agricultores não fez com que Regilane Alves baixasse sua cabeça e voz por onde passasse. Não fez com que ela pensasse que essas características fossem menor que outras. Regilane afirma que já sofreu preconceito por ser agricultura. “Eu já sofri e ainda sofro, mas aprendi a não baixar a cabeça para essas coisas, e falo com orgulho em todos os lugares que eu vou que sou agricultora, filha de agricultores assentados da Reforma Agrária, que sou militante da agroecologia. A agricultura alimenta o mundo, eu não tenho do que me envergonhar”.

Regilane é coordenadora de políticas para as juventudes na prefeitura de Itapipoca, agricultora, filha de agricultores assentados da Reforma Agraria, estudante de ciências sociais e militante da agroecologia. Ela afirma que é difícil ser mulher no Brasil pelo simples fato de ser mulher. “A misoginia é um peso que carregamos e que fecha muitas portas para nós, e quando se está no campo, esse peso fica ainda mais pesado, pois o campo é um lugar ainda muito patriarcal e nega a nossa existência o tempo todo”.

Questionada sobre a valorização da mulher agricultora, Regilane diz que acredita que a agricultura não é valorizada, principalmente a agricultura familiar e de base agroecológica e que existe muito incentivo para os trabalhos na indústria, mas não tem incentivo para o trabalho no campo. “Pouco se investe em assistência técnica, em cursos de melhoramento da produção, em educação do campo e formações técnicas para as filhas e filhos de agricultores”.

De acordo com Regilane, a produção das mulheres é inviabilizada e normalmente elas são vistas apenas como ajudantes, mesmo sendo as mulheres que levam a comida para a mesa. “Nosso maior desafio é ser enxergada como trabalhadora e ter nosso trabalho reconhecido”.

Sobre a valorização da mulher no mercado de trabalho, Regilane diz que já aconteceram alguns avanços, mas que ainda foram poucos e que por conta disso ainda não dá para comemorar, mas dá vontade para continuar lutando. “Viemos de uma conjuntura onde uma mulher foi golpeada do maior cargo de poder político, por não aceitarem serem comandados por uma mulher. Não temos o que comemorar quando uma mulher vereadora eleita é assassinada por mexer nas estruturas e defender seu povo. Não temos o que comemorar quando um presidente da república oferece as mulheres como turismo. Não temos o que comemorar nesse 8 de março de 2022”.

Ser mulher brasileira no exterior


Bárbara: "Se eu não vejo outras mulheres pretas, nos lugares que eu estou ocupando, eu não me sinto realizada de forma plena" / Arte: Doug Araújo/ Colagem e Rebeldia

Bárbara Marques é especialista de diversidade, equidade e inclusão e mestranda de Estudo Africanos na Universidade do Porto, em Portugal. Ela está a quatro anos morando na Europa, foram dois anos e seis meses morando em Portugal e agora na Espanha.

Ainda quando morava em Fortaleza, Bárbara dava aula em um colégio privado, mas com o passar dos anos foi se sentindo estagnada, porque não via perspectiva de crescimento profissional. Isso, juntamente com a vontade de fazer mestrado e o fato de sua mãe já morar em Portugal há alguns anos, lhe deu força para se aventurar no exterior.

Bárbara afirma que esses não foram os únicos fatores que fizeram com que nascesse o desejo de morar fora do país. “Outro contexto pessoal é porque dentro do Brasil eu já estava desenvolvendo um quadro de ansiedade muito grande por conta da violência. Estava com crise de pânico e achei que tendo uma experiência fora do país, com um quadro de violência um pouco menor poderia me ajudar nesse contexto. Errei tá! Não ajudou em nada”.

Questionada sobre se sentir realizada onde se encontra, Barbara afirma que talvez nunca tenha a sensação de realização plena. Isso porque para ela, se sentir realizada de forma plena, os atravessamentos de vivências racistas, machistas e xenofóbicas não poderiam existir. “Por mais que eu veja muitas evoluções na minha trajetória individual, a minha sensação de realização não é plena e não só pelas coisas que eu não alcancei, mas eu acho que não é plena porque eu vejo essa realização como uma jornada coletiva. Se eu não vejo outros iguais a mim, outras mulheres pretas, mulheres migrantes racializadas (que é o termo que eles usam muito aqui na Espanha) do meu lado, nos lugares que eu estou ocupando, eu não me sinto realizada de forma plena”.

“Eu acho que o mercado de trabalho acaba sendo uma reprodução da sociedade. Na verdade é um micro ou macro cosmo social que reproduz todas as nossas dinâmicas”, explica Barbara. De acordo com ela, a mulher, dentro da sociedade é vista de uma forma a ser subjugada e essa forma inferior, que a mulher ainda é vista na sociedade faz com que também o mercado de trabalho opere na ordem de sempre colocar as mulheres na base de uma pirâmide. “Então eu acho que o mercado de trabalho ainda precisa evoluir muito”.

“Só para completar, desmantelar essa opressão contra a mulher dentro da sociedade não acontece se for desconectada das outras de movimentos para desmantelar as outras opressões. Eu não consigo fazer com que a mulher seja valorizada se eu continuo dentro de uma sociedade racista, machista e xenofóbica. Outras nuanças dessa opressão precisam se modificar em paralelo”, finaliza.

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Edição: Francisco Barbosa