Esses dias, em meio ao assalto da pauta na sociedade brasileira fomentado pela mídia comercial que só tem falado da guerra entre Ucrânia e Rússia, voltou a circular intensamente na internet imagens e reproduções de dois trabalhos que marcam a história das artes visuais: “A origem do mundo”, de Gustave Courbet, encomendado por um burguês na França nos idos de 1866 e “A origem da guerra”, de 1989, da artista Orlan, que dialoga diretamente com o quadro anterior. Essas duas figuras da arte francesa marcaram seu nome na história da arte pela sua poética, Orla, inclusive, segue fazendo suas artes aos 74 anos.
Mas antes de entrar no assunto quero fazer um parêntese. Precisamos estar atentos ao que acontece em todo o globo? Sim, com toda certeza, mas precisamos estar atentos igualmente à realidade em nosso próprio país. A mídia comercial, investida de seus interesses, que são muitos, mas quase nada diz respeito a produzir e socializar a informação de forma ética, tem pautado 24h por dia, 7 dias por semana a situação da guerra no leste europeu, criminalizando a ação da Rússia, mas sem problematizar o fascismo presente na Ucrânia, sem problematizar a intervenção dos EUA e da OTAN no conflito, logo produzindo uma informação precária para a população. Sem falar que quando os ataques aéreos, bomba, assassinatos e guerras são no continente africano, Oriente Médio e na América Latina a cobertura não é a mesma, não se critica os bombardeios, assassinatos e crimes de guerra dos EUA.
Por que se usa dois pesos e duas medidas? Por que se faz isso sem deixar claro que tem um lado e faz como se fosse a verdade absoluta? Enfim, papo para quem entende de mídia e para outro artigo, não é o foco de hoje. Mas, antes de fechar de fato o parêntese, eu sou totalmente contra a guerra, a única guerra que eu concordo é a do povo tomando o poder.
Quero falar de algo que aprendi durante o uso desses dois quadros ou de imagens que fazem referência a eles que circularam na rede. Uma primeira questão que me fez acender uma luz de conhecimento e aprender algo novo, algo essencial e que me fez querer socializar com todas foi uma postagem nas histórias de uma amiga minha, Vita B da Silva, que questionou algo que já deveria ser banal entre a gente, que é a reprodução da lógica cisgênera das imagens. A reprodução da binaridade que diz que mulher tem vagina e homem tem pênis. Só nós, cisgêneros, para reproduzirmos essas imagens sem refletir sobre o que elas dizem, quais discursos elas sustentam, mas arrotamos para todo lado que somos pessoas melhores, desconstruídas e tudo mais, mas basta cometer um erro e ser questionada para dizer que não era a intenção e tantas outras desculpas, mas nunca, ou quase nunca pelo que tenho visto por aí, uma postura real de buscar corrigir sua postura. Bora acordar para a vida e assumir nossa responsabilidade no rolê, pessoal? Não adianta criticar a Damaris, o Bozo e toda essa cambada e não fazer o nosso papel. Estudemos. Leiam, amem, convivam, fortaleçam o trampo e respirem o mesmo ar de pessoas trans e travestis, só assim a gente avança.
O outro momento de aprendizagem foi nas histórias de uma psicanalista que sigo e tenho lido bastante, Vera Iaconelli, que questiona até quando vamos seguir associando passividade, docilidade e meiguices a mulheres ou os femininos e associando agressividade, violência e asperezas a homens ou os masculinos. A gente sabe que historicamente nossa cultura é construída para nos moldar, mas estamos a anos no processo de ruptura com essa lógica, e mesmo antes disso sempre existiram pessoas agressivas, amorosas ou o que quer que seja em todas as identidades e expressões de gênero. Em outras palavras, ter uma vagina ou pênis entre as pernas não determina nossa identidade ou expressão de gênero, assim como não determina nossa personalidade, mas sim como nossa sociedade lida diferente com quem tem pênis ou vagina sim. Nós não podemos seguir caindo no senso comum de que o feminino é naturalmente sensível e o masculino é insensível. O gênero é um espectro, não existe uma única forma de expressar, seja o feminino ou o masculino.
Pois bem, socializado com vocês essas duas experiências pedagógicas quero propor que nos permitamos aprender em cada situação que a vida nos lega e que possamos ser sensíveis a esse aprendizado, que as vezes nem chega a ser algo novo em nossas vidas, como foram esses dois casos comigo, mas chega de uma forma inesperada e sob a qual eu pude amadurecer. Não esqueçamos daquele ditado africano: “é preciso toda uma comunidade para educar uma criança” e lembremos que as comunidades são, sobretudo, pessoas e quanto mais diversas forem essas pessoas mais a gente aprende e evolui enquanto povo.
*Trabalhador da cultura e militante social.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa