Uma das mais importantes paratletas brasileiras na ativa, Edênia Garcia, nascida no Crato, interior do Ceará, precisou se mudar aos sete anos de idade com a família para Fortaleza e depois para Natal, no Rio Grande do Norte, movidos pela busca de emprego para seu pai, motorista experiente. Edênia nasceu com ‘Charcot-Marie-Tooth’, conhecida também como atrofia fibular muscular, que interfere nos movimentos dos membros inferiores e ocasiona quedas durante o caminhar.
A atleta, que já conta com cinco ouros em mundiais e três medalhas em paraolimpíadas conversou com o Brasil de fato sobre as dificuldades de se tornar paratleta no Brasil. Confira.
Brasil de Fato – Gostaríamos de começar pedindo para que você falasse um pouco da tua origem.
Eu nasci na cidade do Crato, interior do Ceará, mas aos sete anos mudei com minha família para Fortaleza. Meu pai havia perdido o emprego e a gente foi tentar a sorte na capital. Ficamos lá até o final de 1998, e em dezembro mudamos para Natal, no Rio Grande do Norte. Morei lá até 2014 e agora estou morando em São Paulo, mas foi em Natal que descobri a natação. Como a gente sempre mudava de cidade uma das prioridades era encontrar uma escola e um local para fazer meu tratamento, e numa dessas procuras a gente encontrou um neurologista que indicou a natação, porque a fisioterapia já não estava sendo suficiente, já que minha doença é degenerativa e progride muito.
Depois de um tempo em Natal meu pai conseguiu um emprego de motorista de ônibus da linha do bairro que a gente morava. E através desse emprego ele conheceu um rapaz que andava com moletas, que pegava sempre o ônibus que ele dirigia, daí meu pai perguntou para ele onde ele ia todos os dias, no mesmo horário, e aí rapaz falou que estava treinando para os jogos paralímpicos e que era atleta de natação. E assim meu pai conseguiu pegar informações do local onde ele treinava. O local se chama Academia Tutubarão. Uma semana depois a gente foi lá conhecer e daí comecei essa incrementação do tratamento.
Pouco tempo depois de começar a natação acabei sendo convidada para integrar a equipe e daí comecei a aprender os quatro estilos de nado, coisas bem básicas de natação e muito tempo depois eu já tinha aprendido coisas o suficiente para já passar para o treinamento. E foi quando tudo começou na minha vida e na parte do esporte.
Brasil de Fato – E como era essa relação de sempre ter que lidar com a preocupação em ter que escolher locais que fossem próximos um do outro, tanto a escola próxima de casa, mas também próximo do local de seu tratamento?
A gente sempre optava por procurar uma casa que fosse próxima tanto da escola quanto do local da minha fisioterapia, porque eu já apresentava dificuldade para andar, eu tinha muitas quedas, facilmente perco o equilíbrio e acabo caindo, então, como já era difícil de andar, pegar ônibus ou outros transportes se tornava um desafio. Só que por um momento eu morava na zona norte e a natação era na zona oeste, ou seja, a gente pegava quatro ônibus por dia para poder chegar ao local da minha fisioterapia. No final de 1999, eu ainda fazia a fisioterapia comum, em 2000 a gente encontrou a natação e daí a gente acabou tendo que mudar toda a nossa vida para morar próximo da natação.
Brasil de Fato – E como era conviver com a tua deficiência no ambiente escolar e essa relação dos acidentes que aconteciam, porventura, na escola?
Na escola sempre foi muito complicado porque eu sempre fui uma criança muito introspectiva, tinha muita vergonha de como eu andava, sempre me sentia como se não pudesse pertencer ali. Além disso, sofri muito bullying quando era criança, me chamavam de perna de alicate e aleijada, eu lembro que até quando me levantava para fazer alguma coisa na sala alguns colegas colocavam o pé para que eu caísse. Então, sempre me sentia meio que o pintinho feio, sentia que não podia ficar naquele lugar, me sentia muito mal por estar ali. Era difícil fazer amizade com outras pessoas, mas sempre fui muito boa aluna, então assim, eu acho que por mais que fosse um ambiente difícil para mim, eu sempre me esforcei muito para tirar boas notas.
Brasil de Fato – Como seria a tua vida se não tivesse a natação ou qual é a importância da natação na tua vida?
Olha, eu falo sempre que a natação veio como uma forma de identificação, de me conhecer enquanto pessoa com deficiência, enquanto ser humano, porque até então nem sabia que era uma criança com deficiência. Sabia que era algo diferente, a gente não falava que tinha deficiência ou qualquer coisa do tipo, e só quando passei a fazer natação e conhecer outras pessoas eu comecei a escutar palavras como tetraplégico, paraplégico, amputado, cego. Então comecei a conviver com outras pessoas que eu me identificava, com pessoas que usavam cadeira de rodas e naquela época, para mim, era impensável andar na cadeira de rodas, daí de tanto conviver eu tomei a decisão de ir para a cadeira de rodas como uma alternativa mais segura e de mais liberdade.
A natação chegou para mim desta maneira, de me identificar, de criar a minha autoimagem, de me aceitar, de me mostrar que eu sou capaz de estar convivendo na nossa sociedade como qualquer outra, que mesmo com a minha limitação física eu consegui transformar essa limitação numa ferramenta de trabalho. E foi através da natação que eu consegui formar minha irmã em escolas muito boas e que consegui dar uma vida melhor para minha família.
Brasil de Fato – Quais os próximos passos no esporte para você? Está se preparando para algum campeonato, pensando nos próximos jogos paralímpicos?
O principal de tudo é que eu quero muito estar em Paris.
Eu estipulei como sendo uma data a qual eu vou me aposentar, e mesmo que eu veja essa data como o meu limite e o momento de me aposentar do esporte, não dá para dizer que eu vou fazer isso mesmo, porque eu sempre falo que as coisas não são cravadas na pedra. Hoje eu digo que eu quero me aposentar, mas eu vou saber como que eu vou estar me sentindo em 2024? Então assim, meu pensamento é de aposentadoria.
Eu quero muito estar em Paris nos próximos jogos, mas é um caminho muito difícil até chegar lá. Nós temos esse final de mês início do mês que vem uma seletiva para o campeonato mundial desse ano, porém, o índice está muito alto, e eu sei que para chegar nesse índice eu vou ter que tirar o coelho da cartola, porque hoje eu estou numa posição na minha carreira que é de querer investir num projeto que a gente tem em Natal, que é o Tubarão de Reviver. Então hoje eu estou no momento da minha carreira que eu penso muito nisso, em fazer minha carreira paralela a carreira de atleta, mas ao mesmo tempo, com esse pensamento de fomentar o esporte paralímpico em Natal mais uma vez. E sigo fazendo as duas coisas, os dois caminhos em paralelo para 2024.
Quero estar no mundial esse ano? Quero. Se não tiver está tudo ok, porque eu tenho uma outra proposta na minha vida que é a base do esporte paralímpico. Então tenho certeza de que meu plano principal é esse, trabalhar como gestora, mas em paralelo como atleta, e isso vai culminar em 2024 onde eu quero encerrar meu papel de atleta. E de lá em diante segui com meus planos dentro da gestão esportiva.
Brasil de Fato – Em algum momento de sua carreira você chegou a receber o bolsa atleta ou algum outro incentivo público de ordem federal ou estadual? Você pode contar um pouco essa sua história em relação aos investimentos públicos e privados?
Olha eu vou te falar, sem o bolsa atleta eu não teria chegado aonde cheguei hoje. Se eu fosse depender da iniciativa privada no Brasil para me tornar atleta, me bancar enquanto atleta, me tornar tetracampeão mundial, eu não teria saído da minha casa. Então assim, hoje eu cheguei aonde eu cheguei graças ao Bolsa Atleta, mas agora faço parte de uma outra categoria dentro do Bolsa Atleta, que se chama Bolsa Pódio, destinado para atletas que são ranqueadas mundialmente.
Da primeira leva do Bolsa Atleta fui a primeira atleta a sair do projeto, porque não poderia ter nenhum tipo de patrocínio de fora, fosse ele privado ou estatal, e a partir do momento que eu tivesse um outro incentivo eu teria que repassar a bolsa para um outro atleta. E foi o que aconteceu, fui a primeira do projeto a sair por conta de um outro patrocínio, que veio por meio da Caixa Econômica Federal.
Esse projeto da Caixa Econômica Federal foi viabilizado através do Comitê Paralímpico Brasileiro e patrocina diretamente o atleta. Então assim, por todo meu histórico como atleta eu não teria chegado aonde eu cheguei sem esse tipo de projeto. Lógico que toda política pública que a gente tem no país sofre seus altos e baixos, seus cortes, tem seus atrasos, mas eu não posso reclamar muito desse projeto por isso, porque não teria me tornado a atleta que eu me tornei se não tivesse tido esse tipo de investimento.
Brasil de Fato – Gostaríamos que você falasse um pouco como foi e como tem sido enfrentar desde criança os desafios de ser uma mulher com deficiência no Brasil.
Olha, o desafio maior é você sair da invisibilidade. A mulher por si só, sem deficiência alguma já é colocada em um campo de ninguém, em um local que não tem vontades próprias, não tem direitos, não tem benefícios. Agora imagina a mulher com deficiência. Uma mulher com deficiência é invisível na sociedade, ela é uma mulher que não tem sexualidade, que não pode estar no mercado de trabalho, então assim, são várias barreiras que nos cercam, mas nunca me privei de nada ao ponto de pensar que não posso fazer certas coisas por ser uma mulher deficiente. E minha família, sobretudo as mulheres de minha família, sempre me ajudaram a construir quem eu sou hoje, a não ser presa em barreiras colocadas pela sociedade e viver minha vida sem ligar para os julgamentos feitos pela sociedade.
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Edição: Francisco Barbosa