A falta não pode acabar. Deparei-me com esta frase escrita com tinta spray na parede desgastada de uma das ruas do bairro onde moro quando me deslocava a pé entre minha casa e algum destino que agora ignoro. Embora a palavra despida de formalidades e exposta em um suporte vulgar e ordinário como um muro não seja novidade, fiquei incomodada. Sou entusiasta destas intervenções e já há alguns anos registro frases e palavras que vou encontrando em muros, paredes, meio-fio, chão, postes e outros suportes que se enunciam nos meus percursos cotidianos pela cidade a pé e de bicicleta. O desconforto se deu não pela sua materialidade ou existência concreta ali na parede, mas a mensagem que reverberou a partir desta primeira leitura.
A falta remete a escassez, ausência, privação. Pareceu-me que o recado público ali era de resignação. James Baldwin declarou que “ser negro e relativamente consciente é estar quase sempre com raiva” e eu que sou inconformada e negra desde que compreendi que a fúria pode ser uma ferramenta que movimenta, impulsiona, prepara para o embate e enfrentamento ali, na presença do muro, senti uma espécie de raiva do que aquela frase afirmava de maneira tão categórica.
Como assim a falta não pode acabar? O que dizer da fome, do racismo, das desigualdades, violências e tantas outras injustiças sociais? Não seriam estas vulnerabilidades exemplos de falta as quais precisamos transformar em abundância? A falta fez presença como tema inadiável e convivi por vários dias, tardes e noites com a ideia da perda e o lugar que ela ocupa nas nossas trajetórias.
Perder é um verbo curioso, palavra temida e por vezes evitada. Sabemos como pode ser desafiador perder as chaves na hora de sair, o celular quando precisamos mandar aquela mensagem ou fazer uma ligação. Perder dinheiro é uma indignação. Em maior ou menor medida, todos já nos chateamos ao perder tempo, o ônibus, a vaga de estacionamento, um documento, papel importante ou alguém que se ama. A lista é interminável e a poeta Elisabeth Bishop escreveu sobre como “a arte de perder não é nenhum mistério”. De alguma forma, tentamos driblar a inevitabilidade da falta e da perda com estratégias como deixar a folha do calendário no mês passado ainda por arrancar, adiar o fim daquilo que já não é mais ou substituir o que falta por outras ausências.
Estamos cotidianamente perdendo coisas contáveis e incalculáveis na mesma cadência: pele, o cálcio dos ossos, as chaves de casa, o colorido dos cabelos, a inocência ou alguém que se ama muito.
Meses depois do primeiro encontro, a frase retornou com outra força quando me dei conta que o ano mudou e continuamos perdendo para o vírus, para uma pandemia mal gerida e desacreditada, para os negacionistas, o governo, as reformas que não nos favorecem, o aumento dos preços e o cansaço de ter esperança de que a vida melhore. Até o nosso revide, muitas vezes acanhado e enfraquecido, parece ser uma maneira de continuar perdendo.
Fiquei um pouco mais cínica e menos ingênua com essas perdas e faltas que imóveis ao movimento do ponteiro do relógio parecem repetir-se feito filme de ficção científica. A esta altura em que coleciono amores de juventude e possuo uma caixa onde guardo meus mortos, a frase no muro ganhou outros contornos quando seu autor, a quem chamarei de “professor”, me conta o que o inspirou a realizar a intervenção. Ele comenta que reparou nas ausências que a cidade mobiliza e que aquilo que falta é o reverso da presença: faz falta a ter não fazer mais ou outra ausência vir a ocupar o lugar. Fui conduzida pela conversa com professor ao tema do desejo, esse terreno incerto e incontornável que nos convida a encarar a falta. Desejamos aquilo que não temos e o desejo é o impreciso vibrando em nós, nosso buraco ou cisão que precisa ser alimentado, cuidado, mas jamais encerrado.
A frase permanece no mesmo lugar, mais desgastada e ainda assim eloquente, lembrando que a falta não pode acabar é também uma brecha que nos mobiliza a buscar o que queremos ou precisamos. Ou porque antes do impulso que nos joga lá na frente, há aqueles passos para trás que nos ajudam a pular mais longe.
Que as paredes de desejo e saudade do que já não está entre nós – pele, ossos, cabelos, memórias ou pessoas – não nos deixe esquecer que somos feitos de perdas, mas também daquilo que achamos despretensiosamente em um muro descascado e sem importância, ao virar a esquina.
Dedico este texto a Emerson Sátiro, alguém que conviveu com perdas e faltas e ainda assim soube ser abundância. Messim, presente!
*Doutora em Sociologia (UFC), professora da rede estadual do Ceará, pesquisadora do laboratório das artes e das juventudes – Lajus (UFC). É escritora amadora em mastudoemuitomais.medium.com
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Francisco Barbosa