Ceará

direito a moradia

Missão-denúncia investiga despejos e violações de direitos humanos em Fortaleza

Ação terminou com audiência pública realizada no auditório Murilo Aguiar da Assembleia Legislativa do Ceará

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Em 2019, de acordo com os dados revisados pela Fundação João Pinheiro, o deficit habitacional existente no Brasil era de 5,8 milhões de moradias. - Foto: Camila Garcia

Nos dias 17, 18 e 19 de novembro, Fortaleza recebeu a Comitiva da Missão-Denúncia da Campanha Despejo Zero. O grupo visitou seis comunidades que estão em luta por moradia para verificar denúncias de abusos e violações de direitos e ameaças de despejos. A iniciativa terminou com a audiência pública “Violações do direito à moradia digna”, realizada nessa sexta (19), no auditório Murilo Aguiar da Assembleia Legislativa do Ceará e presidida pela Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Casa. 

Em 2019, de acordo com os dados revisados pela Fundação João Pinheiro, o deficit habitacional existente no Brasil era de 5,8 milhões de moradias, com uma tendência de aumento influenciada pelo ônus excessivo do aluguel urbano. Com a crise econômica e social provocada pela pandemia do coronavírus, o fim de políticas sociais, o aumento do desemprego e da miséria, se estima que essa projeção tenha crescido. Sem ter onde morar, a saída para a população é ocupar os terrenos abandonados e exigir que o poder público construa políticas de habitação de interesse social.

Entretanto, o Estado que deveria proteger a população lança mão de suas estruturas jurídicas e policiais para retirar as pessoas que constroem moradias precárias em locais abandonados. O termo jurídico denominado é “reintegração de posse”, para quem se sente expulso, o termo utilizado é despejo. Segundo a Campanha Nacional Despejo Zero, durante a pandemia foi possível verificar um aumento de 653% no número de famílias ameaçadas de perder a sua moradia, de 353,76% do número de famílias despejadas.

Essa realidade também pode ser observada no Ceará onde a falta de moradia desencadeia uma série de violações de direitos. Segundo dados do Escritório Frei Tito de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular (EFTA), em 15 de junho de 2020, quase 2.500 famílias encontravam-se ameaçadas de despejo no estado. Em 2021, esse número quase dobrou para 4.685 famílias.

Durante a audiência pública na Assembleia, os integrantes da Missão, parlamentares, representantes do Ministério Públicos, da Defensoria Pública e de órgãos que atuam na pauta da moradia na prefeitura de Fortaleza e no Governo do Ceará puderam expor suas visões diante dos desafios enfrentados pela população na luta por moradia digna.

“A situação ganhou contorno de crise humanitária ao se levar em conta que uma das principais recomendações para impedir a disseminação do vírus causador da covid-19 incluíam o isolamento social a ser realizado no domicílio. Garantir a moradia assumiu a inegável dimensão de medida de promoção da saúde pública”, afirmou o deputado estadual, Renato Roseno (PSOL), durante a audiência pública.

É verdade que com o crescimento da pobreza a pauta da necessidade de moradia ganhou contornos alarmantes com a pandemia, entretanto, Kelvin de Lima, da Central dos Movimentos Populares (CMP) no Ceará, lembra que a situação é antiga. “Esse país tem uma dívida histórica com o povo que habita seu território. Em 1850 foi instituída a Lei de Terras, um marco fundamental para entender a política de moradia e pensar as cidades no país. Ela foi criada para excluir, sobretudo, a população negra do direito a cidade, a moradia e a ter uma vida digna. E de 1850 até agora a gente tem visto a atualização dessa lei de terras, onde terras são concentradas na mão de poucos, onde não é garantida a regularização fundiária de quem habita e constrói relações sociais. Precisamos que o Executivo venha para mesa construir com a gente, o Governo do Estado e a Prefeitura, vamos pagar essa dívida histórica com a sociedade.”


Segundo a Campanha Nacional Despejo Zero, durante a pandemia foi possível verificar um aumento de 653% no número de famílias ameaçadas de perder a sua moradia. / Foto: Camila Garcia

A Missão-Denúncia

Sobre como funcionou e quais os objetivos da Missão-Denúncia, Mayara Justa, advogada do EFTA explicou que “tem metodologia de fazer uma visita, sentar com instituições e fechar com audiência pública, mas não se encerra. Isso porque os relatores vão produzir um grande documento com todas as situações colocadas, vão encaminhar aos órgãos do executivo, legislativo e judiciário cobranças e recomendações a partir das situações. A Missão também tem uma ligação com uma campanha internacional contra despejos, onde o relatório será apresentado para compor denúncias contra as violações de direitos por moradia em Fortaleza e no Brasil”.

A comitiva da missão foi composta por representantes da Campanha Nacional Despejo Zero, do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), Plataforma Dhesca, Habitat para a Humanidade Brasil, CDES Direitos Humanos, IPPUR/UFRJ, Observatório das Metrópoles, Escritório Frei Tito, Central de Movimentos Populares, e outras representações de ONGs e movimentos de moradia e direitos humanos. 

Comunidades visitadas

Ocupação Alto das Dunas, no Bairro Vicente Pinzón, onde 313 famílias ocuparam um lote abandonado há mais de 30 anos. Em 22/09/2021, cerca de 62 famílias foram alvo de ação de reintegração de posse.

Raízes da Praia, ocupação existente desde 2009, na Praia do Futuro.

Titazinho e Serviluz, região de forte interesse imobiliário, onde nos últimos vinte anos, diversos planos/programas e projetos urbanísticos foram previstos ou concretizados no seu entorno. Neles, há sempre a previsão de remoções, o que assusta a população local.

Comunidades impactadas pelas obras do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), realizadas a partir da preparação de Fortaleza para a recepção da Copa do Mundo de 2014. Há anos as famílias estão sem uma solução definitiva, muitas às custas de aluguel social defasado aguardando a construção dos conjuntos habitacionais prometidos para seu reassentamento.

Vila Vicentina, 40 famílias resistem em uma área superprivilegiada em Fortaleza. A luta dos moradores é pelo reconhecimento da comunidade como patrimônio histórico definitivo e a conclusão e execução do Plano Integrado de Regularização Fundiária (PIRF) da Zeis Dionísio Torres, instrumento essencial para que seja efetivado o direito à moradia com qualidade e segurança. 

Mesmo com legislações proibindo, despejos persistem

Em junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso proibiu despejos ou desocupação de imóveis urbanos até 31 de dezembro deste ano. A decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), de nº 828/DF, diz que a suspensão só não tem validade para imóveis rurais, ou quando o aluguel da propriedade é a única renda do locador.

Em julho, o Congresso aprovou um projeto que manteve a proibição de despejos até o fim do ano. A medida logo foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ainda assim, os parlamentares decidiram por derrubar o veto. Entretanto, como a lei não havia sido publicada desde julho (portanto, nem o veto nem sua derrubada), o que valia então era a decisão do STF proibindo qualquer despejo.

Entretanto, os movimentos populares já reconhecem que esse prazo não é o suficiente. “Os movimentos de moradia querem aumentar o prazo da ADPF 828, devido a crise instalada pela covid-19, pois para além da questão socioeconômica, por conta dos efeitos da pandemia, tem o fim de programas sociais como o bolsa-família. Tem também a questão do desemprego e do número de pessoas desalentadas”, declarou a advogada, Mayara Justa.

Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.

Edição: Francisco Barbosa