O Dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro, foi instituído oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data faz referência à morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares – situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco, na região Nordeste do Brasil. A data de sua morte motivou membros do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em um congresso realizado em São Paulo, a elegerem a figura de Zumbi como um símbolo da luta e resistência dos negros escravizados no Brasil, bem como da luta por direitos.
Por conta dessa data, o mês que também é conhecido como "Novembro Negro" é marcado por diversas ações e debates sobre questões de raça e racismo. Nesse sentido, o Brasil de Fato conversou com Izabel Accioly, antropóloga, para falar sobre a luta antirracista no Brasil e, principalmente, no estado do Ceará.
Brasil de Fato – Para iniciarmos, gostaria de saber o que na prática significa a frase “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”?
"Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, essa frase é da filósofa americana Angela Davis, uma das fundadoras dos Panteras Negras, e significa que não basta apenas repudiar o racismo, ou se policiar e ficar atento para não o reproduzir, mas é preciso também transformar a realidade social e a sociedade. Sabemos que a sociedade é estruturalmente racista, e para combatermos isso precisamos mexer nessa estrutura racista sendo antirracista, e fazemos isso a partir do momento que adotamos posicionamentos e práticas antirracistas, como o apoio a pessoas negras, incentivar Organizações Não Governamentais que beneficiam e trabalham com o povo negro, entre outras práticas.
Brasil de Fato – Porque ainda vemos tantos casos de racismo no Brasil?
O racismo não é um ato isolado. Como define o professor Sílvio Almeida, o racismo é estrutural, logo, se encontra na gênese da sociedade brasileira, organizando o funcionamento de nossa sociedade. Podemos ver isso olhando como a nossa formação social é dividida, entre pobres e ricos, brancos e negros, e isso está presente no Brasil desde quando somos Brasil, desde a chegada dos portugueses. É um processo que veio da colonização feita pelos brancos europeus, que sempre foi colocado como superior às pessoas negras e indígenas. E a nossa posição social nessa hierarquia ainda se encontra na base da pirâmide.
Precisamos ficar atentos que o racismo é uma constante na sociedade brasileira desde sempre, que se perdura até hoje por ainda não haver nenhuma nova estruturação social que venha a inibir que pessoas brancas tenham o senso de superioridade. É importante ressaltar que quando falamos sobre esse senso de superioridade para uma pessoa branca é negado de imediato, e então questionamos essa mesma pessoa se ao chegar em restaurantes de bairros nobres ela busca ao seu redor encontrar pessoas negras ali que não estejam nos serviços de limpeza ou de garçom, e a resposta é sempre negativa. Isso acaba se tornando a naturalização de algo que não é natural.
Brasil de Fato – No dia 20 de novembro é comemorado o Dia da Consciência Negra, qual a importância dessa data?
A importância do Dia da Consciência Negra é justamente fortalecer o nosso pertencimento étnico-racial, para que nós, pessoas negras, nos lembremos que não viemos de escravizados, não somos descendentes de escravizados, somos descendentes de reis e rainhas, que vieram do continente africano, e aqui foram subjugados. Precisamos saber que a história do povo negro brasileiro não começa nessas feridas, começa no continente africano.
Então, o Dia da Consciência Negra, que está ligado com a história de Zumbi dos Palmares, é para celebrar a nossa fortaleza, resistência, beleza, cultura e o nosso valor. E isso se faz importante para a transformação dessa posição social que nos foi empurrada e a qual fomos colocados.
Brasil de Fato – Como você avalia o fato de as pessoas negras receberem uma quantidade maior de convites para participarem de propagandas durante o mês de novembro, diferente do restante do ano?
Geralmente em novembro, enquanto mulher negra que trabalha e debate a negritude, minha agenda fica lotada. E vale ressaltar que a maioria são convites não remunerados, mas que todos são para falar sobre a questão racial. E esses convites se acumulam em novembro quando, na verdade, o racismo não é visto somente nesse mês. Nossa cultura e nossos valores não são reproduzidos e vistos somente em novembro. Muitas vezes, esse conhecimento que nós temos sobre a questão de raça que nos é cobrado nesses espaços não é valorizado, sendo cobrado somente nesse momento e esquecido durante o ano todo.
Outro problema é que quando somos convidados para palestrar em universidades privadas, empresas, eventos corporativos entre outras ocasiões, é importante que sejamos pagos, pois é o nosso trabalho, porém, nunca querem nos pagar, ou acham que esse valor é alto e não corresponde ao nosso conhecimento que está sendo repassado naquele momento. Isso demonstra o quanto os saberes e conhecimentos, quando estes partem de uma pessoa negra, são diminuídos. E aí nos perguntamos que antirracismo é esse na qual as pessoas querem que trabalhemos de graça? E se olharmos para a história, sabemos que esses comportamentos são resquícios da escravidão, ao qual pessoas negras eram submetidas a trabalhos sem remuneração alguma e ainda tinham seu trabalho diminuído e seu saber questionado.
Brasil de Fato – O que é branquitude e como e onde ela se manifesta?
Ser branco se expressa na corporeidade, na brancura da pele e no fenótipo. Para além disso, ser branco é ser proprietário de vantagens e privilégios raciais, tanto simbólicos como materiais. Ser branco é um grupo social que ocupa o lugar mais elevado da hierarquia social, e com isso, tem o poder de classificar os outros quanto a raça, como brancos e não brancos, e o que não é branco não é bom.
Existe um conceito chamado “Pacto Narcísico da Branquitude”, na qual trata sobre como as pessoas brancas se beneficiam, se protegem, se contratam, se aplaudem. Logo, se conclui que a branquitude é um lugar de poder e conforto racial, em que sua raça não é questionada e não possui nenhum problema por pertencer a tal.
Brasil de fato – O que é o Preconceito de Marca?
É bem típico da sociedade brasileira. Como nós temos uma historia de miscigenação bem forte e enraizada, a racialidade passa a ser entendida através da marca, ou seja, da aparência. Quão mais marcada a pessoa é com o fenótipo negro, mais essa pessoa vai ser identificada como negra, e mais gravemente sofrerá racismo.
Por exemplo, eu sou uma mulher negra que tem um pai branco, mas eu não posso afirmar que sou branca apenas por esse motivo. Do mesmo modo que uma pessoa branca que é filha de uma pessoa negra não sofrerá racismo, porque o negro é a sua ancestralidade, pai ou mãe. Ou seja, o que importa não é a sua origem, é a cor de sua pele, e sua origem não será determinante sofrer racismo.
Brasil de fato – Você está à frente do curso online “Relações sociais e branquitude no Brasil”, você poderia falar um pouco mais sobre o curso?
O contexto de surgimento do curso é maio de 2020, quando acontece o assassinato de George Floyd, morto pelas mãos de um policial americano branco nos EUA. Naquele momento tivemos um grande crescimento das manifestações do Back Lives Matter (Vidas Negras Importam), e muitas pessoas começaram a me abordar e me questionar sobre racismo estrutural, lugar de fala, quando ou não poderia falar sobre. Isso me fez sistematizar esse conhecimento e tornar acessível para pessoas que não tinham o acesso a esse tipo de educação.
Vou ressaltar aqui que, mesmo pessoas com formação acadêmica, graduação, mestrado ou doutorado, vieram me procurar para fazer o curso, porque mesmo tendo acesso à educação superior e altas formações sabemos que esse tipo de conhecimento não existe nas universidades, mesmo nas públicas e mais renomadas, elas não educam as pessoas para entender raça. Fui aluna da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal de São Carlos, cursei ciências sociais e antropologia, ambas categorizadas como ciências humanas, porém, não tive nenhum tipo de disciplina que tratasse sobre raça, então imagine a dificuldade que as pessoas que precisavam tratar dessas temáticas encontravam se não possuíam referências.
O curso já se encontra em sua 43º edição e conta com mais de 1900 alunos, dentre esses, ex-professores, brasileiros que moram fora do país, pessoas que entenderam que a questão racial no Brasil não é algo secundário, mas é central para entender a realidade brasileira.
Brasil de fato – Você gostaria de deixar alguma mensagem final?
Gostaria de deixar uma mensagem, sobretudo para as pessoas negras. Não somos nossas feridas, não somos as violências que cometeram contra nós, não somos as nossas dores. Nós somos as nossas potências e precisamos saber como somos potentes, então se aquilombem, cheguem junto das pessoas negras, porque é na união entre os nossos que nos fortalecemos. E para as pessoas brancas, é que se vocês desejam contribuir na luta antirracista, comecem por vocês mesmos, se eduquem, sejam responsáveis pela sua própria educação racial e não terceirize isso em seu amigo ou colega negro próximo, não espere que as pessoas negras lhe eduquem. Nós, pessoas negras não viemos ao mundo para servir de educador para os brancos.
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Edição: Francisco Barbosa