Imagina você no quintal de casa e de repente sente cair do alto pingos d’água. Como todo bom cearense, você comemora a dádiva que vem do céu. Mas daí você ouve um barulho de uma aeronave sobrevoando a região e descobre que a água que caía sobre a sua cabeça, na verdade, era veneno. A situação que parece recém-saída de um filme de guerra biológica, existe. E faz parte da realidade de muita gente que vive próximo a grandes áreas de plantio do agronegócio.
Uma chuva de veneno, assim pode se resumir a pulverização aérea, prática utilizada em larga escala pelo agronegócio, que faz uso de aviões para despejar agrotóxico nas plantações. O problema é que o veneno que vem do ar, não banha só as plantações, mas contamina o lençol freático e impacta negativamente a saúde da população e do meio ambiente. De tão danosa, a prática já foi utilizada, inclusive, como arma de guerra. Como explica o geógrafo e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Leandro Cavalcante: “Foi utilizada na Guerra do Vietnã, quando os Estados Unidos despejou o chamado agente laranja sobre as florestas, sobre os campos, sobre as plantações, sobre as pessoas no Vietnã, causando um impacto social e ambiental na saúde dessas pessoas e de toda a biodiversidade muito, muito grande”.
Apesar de grandes empresários defenderem que a pulverização acontece de forma controlada, inúmeros indícios apontam para outra realidade. De 2007 a 2017, data do último levantamento oficial do Sistema Único de Saúde (SUS), foram notificados cerca de 40 mil casos de intoxicação aguda por causa dos agrotóxicos. São comuns os registros de “acidentes” onde pessoas, algumas delas crianças, tomaram banho de veneno, por conta de aviões que sobrevoavam, inclusive, escolas. “Em muito dos casos, há um controle dos locais onde vão ser atingidos por essa chuva de agrotóxicos. A grande questão é que, às vezes, não há como ter esse controle em decorrência de um processo chamado de deriva, ou seja, o agrotóxico que é despejado no ar, ele pode, com o vento, se dissipar para áreas próximas a essas plantações e até mesmo áreas bem distantes, havendo um risco muito grande de contaminação das pessoas”, enfatiza Leandro, pesquisador do tema.
É o que explica também a advogada e Doutora em Direito pela Universidade Nacional de Brasília (UNB), Talita Furtado: “Estima-se que apenas 30% das substâncias que são aplicadas ficam retidas nas plantas, o restante é dispersado pela ação dos ventos e chega aos solos, as águas, as pessoas, as comunidades. Aqui no estado do Ceará, apenas na região da Chapada do Apodi, se estima que entre os anos de 2000 a 2010 foram lançados mais de 4 milhões de litros de cauda tóxicas pulverizadas naquela região”.
De acordo com a advogada que acompanha de perto a situação da região, pesquisas apontaram ainda que 68% do material utilizado nessa cauda eram considerados tóxicos, ou extremamente tóxicos. O que significa ter a capacidade de lesionar tanto o ambiente como a saúde das pessoas. “Nessa região existem inúmeros casos de adoecimento. De intoxicação por agrotóxicos, de cânceres, é uma região que tem cinco (5) vezes mais casos de concessão de benefícios previdenciários por cânceres, quando comparado a outras regiões de agricultores que não são expostos a esse tipo de prática. Também é observada e registrada em inúmeras pesquisas, a presença de recém-nascidos com más formações congênitas, bem como o crescimento dos casos de puberdade precoce e de inúmeros agravos à saúde dessa população”, salienta.
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Em 2019, uma lei pioneira passou a vigorar em todo o Ceará proibindo o uso da pulverização aérea. De autoria do Deputado Estadual, Renato Roseno (PSOL) e elaborada a partir do diálogo com movimentos populares, pesquisadores e entidades científicas, foi batizada de Lei Zé Maria do Tomé e proíbe o despejo de agrotóxicos por aeronaves em território cearense. “Zé Maria foi uma importante liderança que lutou contra a pulverização aérea de agrotóxicos, pela vida e pelo meio ambiente e foi assassinado no dia 21 de abril de 2002. Por isso, a lei leva o seu nome, em homenagem ao seu martírio, em homenagem à sua luta”, contextualiza Roseno.
Mas desde que foi aprovada, a regra tem enfrentado inúmeros ataques: “A lei tem sofrido ameaças pelo agronegócio, claro, porque o agronegócio não tem compromisso com a vida e com o meio ambiente, tem compromisso com o lucro. Eles tentaram aqui no Estado barrar a lei com três processos, perderam os três”, enfatiza Renato Roseno.
Agora, numa nova tentativa de derrubar a lei, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir que ela seja declarada inconstitucional. O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) foi marcado para acontecer do dia 12 ao dia 22 de novembro. O assunto começou a ser analisado pelo plenário na última sexta-feira (12).
Na segunda-feira (15), o ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo e a votação foi adiada, possibilitando mais tempo para mobilização a favor da constitucionalidade da lei e para o amplo debate. Até o adiamento, dois ministros haviam votado. A relatora, Ministra Cármen Lúcia, e o Ministro Edson Fachin se posicionaram contrários à ADI — mantendo a constitucionalidade da lei.
Para Talita Furtado, Leandro Cavalcante e Renato Roseno a existência da legislação abre precedentes para os demais estados no Brasil. Pois a exemplo do Ceará, outros municípios e estados podem criar legislações mais protetivas ao meio ambiente e a saúde da população em relação ao tema de agrotóxicos.
“É importante destacar que essa lei ela segue o que há de mais moderno em termos de legislações ambientais, a exemplo do parlamento Europeu que desde 2009 proíbe a prática de pulverização aérea de agrotóxicos. Nós afirmamos a sua constitucionalidade, a existência das razões de ordem local para preservar sua vigência. Contamos com a sociedade civil interessada, com as comunidades, com os movimentos sociais para que atuem, difundam as informações que são necessárias pra que a gente possa conhecer esse tema e preservar não só a lei Zé Maria do Tomé, mas também a possibilidade de que estados e municípios de todo o país possam criar legislações ambientais que sejam mais protetivas pra saúde, pra vida, pra agroecologia e pra agricultura familiar”, finaliza Talita.
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Edição: Camila Garcia